segunda-feira, 26 de março de 2012

B Bar (intro # 10)

Assim que entro no B., a primeira pessoa que encontro é o Rafael. Está à porta, como um sorridente relações públicas. «Já estávamos a ver que não virias.» E não sabe ele o quão perto esteve tal de acontecer. Cheguei a desligar o telemóvel, a por o telefone e o interfone fora dos descansos, e a sentar-me no sofá com a sala completamente às escuras, para o caso de me aparecerem diante do prédio.Mas acabei por me decidir a sair de casa e a percorrer a curta distância até ao bar, tendo-me arrependido no momento em que, ao começar a descer a paralela à Rua da Escola Politécnica, vejo o  pequeno ajuntamento diante do B. O alberto mentiu-me. A memória do meu último companheiro não ia ser assinalada de forma discreta, que foi o argumento usado para me convencer. Não queria que começassem a falar-me sobre o Armindo e a maravilhosa história de amor que protagonizámos. Porém, era tarde para retroceder; havia sido visto e reconhecido. Quando me aproximo da porta e furo a pequena multidão ali concentrada, olham-me, sorriem, mas limitam-se a dizer-me: «Sê bem-vindo de novo.»

Se o primeiro aniversário do passamento de Armindo em tão violentas circunstâncias é o pretexto para a "reunião", há um acordo, que desconfio não ter sido preciso verbalizar, para que se falasse nele o menos possível. Chego a pensar que fosse por minha causa - No dia do funeral fui tomado por um desespero profundo que durou quase uma semana e de onde só saí porque o Alberto pegou em mim e levou-me a uma consulta de psiquiatria. - No entanto, acabo por me aperceber de que não é disso que se trata. Esta noite serve, sim, para colocar o "Armindo" numa prateleira, possivelmente a mais inalcançável. 

O Alberto está atrás do balcão, função que cabia quase sempre a Armindo, sorri e encolhe os ombros na minha direcção Vira-me as costas e tira uma garrafa da prateleira com o fundo espelhado, onde me vejo aproximar. Quando cheguei junto ao balcão, tinha já um gin tónico à minha espera. «Ainda bem que vieste... temos uma coisa para te dizer. Até o Pablo veio de propósito de Sevilha. Telefonou-me há pouco, quando vinha a sair do hotel.» Ia para lhe ralhar por me ter mentido; mas, em vez disso, pego no copo que empurrara  na minha direcção, dou o primeiro trago de gin.e fico a olhar para ele com um sorriso parvo até que alguém me abraça, segredando-me: «Culito bueno!» Não preciso olhar para trás nem para o espelho que serve de fundo à prateleira das garrafas, reconheço a voz de Pablo de imediato. A última vez que o vi foi no cemitério, onde se manteve sempre afastado de mim. Olha-me e espera pela minha reacção. Abraço-o e digo-lhe que tive saudades. 

O B. enche de repente e Alberto não tem mãos a medir. Cruzamos os olhares e, sem me dizer nada, passo para o outro lado do balcão e começo a atender os clientes, percebendo que era aquilo que me queriam pedir. O Alberto, o Rafael e o Pablo param o que estão a fazer e olham para mim, sorrindo uns para os outros.

E eu ocupo o lugar de Armindo.


FIM do Capítulo I do B Bar e início de uma longa ausência, para revê-lo, livrar-me de algumas elipses e tornar o estilo uno.

segunda-feira, 12 de março de 2012

B Bar (intro # 9)

O telefone tocou já depois das quatro da madrugada, quando acabava de fazer a cama de lavado. Pablo não tinha saído há dez minutos e o Armindo devia estar a ligar o alarme do B. e a pôr-se a caminho de casa. 

Uma chamada a meio da noite não prenuncia boas noticias. Pensei nos meus pais.

«Estou sim.» Disse depois de desembaraçar o nó que me estrangulava.

«O senhor António Q. está?»

«Sim, sou eu.»

«Senhor Q. fala da policía...»

«Da pol...»

«Aconteceu um crime.»

«Um crime?! Aconteceu alguma coisa aos meus pais.»

«Com os seus pais?! Não, senhor. Ao que tudo indica, não foi com os seus pais.»

«Então, com quem?» Mas já sabia. 

«Conhece um homem chamado Armindo F.?»

«Sim. É meu companheiro. Como é que ele está?»

«Não lhe sei dizer. Pediram-me que o avisasse de que um carro ia buscá-lo.»

A campainha tocou.

«Vou já. Vou já para aí...» Deixei cair o auscultador.

Saí do apartamento, desci as escadas a correr. Defronte do edifício, estava uma viatura da PSP. No tecto piscava uma luz azul.

«O que é que aconteceu? Como é que ele está?»

«Não sabemos. Recebemos ordens para vir buscá-lo. Apenas isso.»

Nunca demorei tão pouco tempo a chegar ao B. Uma multidão concentrava-se no passeio oposto, do outro lado da barreira levantada pela PSP. Levaram-me para o interior do B. havia policias e agentes da PJ por todo o lado. Não vi o Armindo.

«Onde está ele?» Perguntei a um agente à paisana, que não me deixou entrar na cozinha. Mas vi-o logo. Primeiro as pernas, num ângulo impossível, depois o sangue empapando a camisa e por fim a cara. Metade do rosto tinha desaparecido.

«Reconhece a vítima?»

Fiz que sim.

«Partilhava o apartamento consigo?»

Voltei a fazer que sim.

«Tudo leva a crer que terá sido um assalto a que o senhor Armindo F. tentou resistir.»

O meu rosto estava lívido.

«Quer sentar-se?»

Fiz que não.

«Mas também pode ter sido apenas uma forma de disfarçar um crime de ó... O senhor está a sentir-se bem?»








B Bar (intro # 8)

Nada foi partido, mas abriu-se uma brecha; apesar de imperceptível, a fenda estava lá, permanentemente. Um choque mais violento e teríamos de apanhar os cacos do chão, cortando-nos ainda mais.

Se há noite deixava-o enlaçar-me pela cintura e pôr uma perna sobre as coxas, como fazia desde a primeira noite, lembrava-me de que me dissera há muito tempo, "Se um homem foge de ti durante o sono, podes crer que mais depressa fugirá quando estiver acordado." Sentia-lhe o bafo na nuca e dispunha-me a adormecer com o sorriso mais simpático que conseguia pôr no rosto. Nem me atrevia a mexer um único músculo que fosse.

No entanto, quando chegava um novo dia e ia para o trabalho, raramente pensava no Armindo. Se me telefonasse, nunca atendia à primeira vez; aliás, só o fazia para que os meus colegas deixassem de me olhar de soslaio. Durante a pausa do almoço e depois de sair do escritório, ia para uma esplanada e tirava um livro da pasta, voltando a ser o António de sempre: livre e despreocupado. Não chegava a ler: o livro era apenas o artificio para observar discretamente quem me olhasse. Via um homem sozinho olhar-me e imaginava-nos personagens de episódios escabrosos. Nunca me passava pela cabeça ir para a cama com esses homens, bastava-me a fantasia e saber que poderia acontecer.

Em casa, porém, continuava a pedir a Armindo que me ajudasse a lavar a loiça depois do jantar, a ver televisão na sua companhia e a fazer amor quando acordávamos a meio da noite. Fazíamos amor como dois náufragos, agarrando-nos um ao outro em desespero, mas ele ignorava que eu não era uma tábua de salvação. Certa noite tive a sensação de ouvi-lo dizer dentro de um sonho que eu já não gostava dele. Amava-o, é certo, mas desejava magoá-lo; não suportava a ideia de que o seu amor fosse maior do que o meu.

Foi então que surgiu o quarto sócio de Armindo. Um espanhol que estava constantemente em trânsito entre Sevilha e Lisboa. Um homem de rosto duro que me despiu na primeira vez que pôs os olhos de torcinário em cima de mim. Soube imediatamente que a fantasia deixara de me satisfazer. Vi-o e soube que não era homem para respeitar as amizades.

Sempre que ele vinha a Lisboa e Armindo estava no B., ele vinha ter comigo. Abandonava-me aos seus caprichos e deixava-o fazer-me coisas que nunca permitira a Armindo. Na madrugada em que me ligaram da esquadra pedindo-me para que fosse reconhecer o corpo de Armindo, Pablo acabara de me fazer explodir num riso transbordante.


quinta-feira, 8 de março de 2012

B Bar (intro # 7)

Pedaços monstruosos de algodão enodoado preguiçavam pelo céu, ameaçando alijar a pesada carga a qualquer momento; uma brisa morna e salgada empurrara para longe a aragem setentrional que se fizera sentir durante quase toda a semana  e passara a acariciar o vidro das janelas, numa súplica insistente para entrar. Estávamos sentados, ambos com roupões axadrezados e chinelos felpudos, entretidos com a edição daquele domingo de um diário - o Armindo lia o jornal e eu a revista, mais tarde trocaríamos -, entrelaçando os dedos das mãos livres.

Conhecia este silêncio. Vi os meus pais repeti-lo vezes sem conta. Nessa época, não compreendendo como um casal que se amara ao ponto de desejar casar e de ter filhos juntos podia não ter assunto para conversar, jurei a mim mesmo que nunca deixaria o emudecimento tomar conta de uma relação. Mas depois, ao replicar o comportamento que tanto me exasperou durante toda a adolescência, desejava aquela tranquilidade, entendendo que os casais não precisam de grandes discursos nem de grandes momentos, pois a felicidade doméstica também se encontra no aborrecimento.

Ele chegou ao fim do jornal antes de eu acabar a leitura de um último artigo que me despertara a atenção e enquanto esperava que lhe passasse a revista, o meu telemóvel tocou, fazendo com que Armindo arqueasse uma sobrancelha.

«Olá mãe», disse e, sem me dar conta, tirei a aliança. O arame plastificado que ele atou em redor do meu anular havia sido substituído há um ano. Na ourivesaria de uma amiga de Armindo, encontrámos uns anéis de prata e cautchú e comprámos dois iguais.

«Não digas nada», disse para Armindo, depois de tapar o telemóvel com a palma da mão. Só me apercebi do tom ríspido e autoritário ao vê-lo revirar os olhos e levantar-se do sofá, resmungando entredentes.

«Como é que vão as coisas por aí?»

«Oh, tudo bem! O teu pai continua o mesmo chato de sempre. Mas já não há remédio. Também, isso agora pouco interessa. Liguei-te, não para falar sobre mim, mas para saber coisas de ti, meu filho. Tenho tantas saudades tuas.»

«Também eu... também eu tenho saudades vossas...»

«Vê-se... Nem no natal tivemos a honra de que vossa excelência se dignasse a vir ver os seus pais....»

«Oh mãe! Não comece. Nem sabe como vão as coisas no trabalho.»

«Ouve, talvez pudéssemos ir aí um dia destes.»

«Havemos de ver isso... havemos de ver, mãe.»

A última coisa que desejava ter, naquele momento, era a minha mãe na cidade. Roguei todas as pragas e mais algumas ao Armindo, por lhe ter cedido e mudado-me para o seu apartamento, pondo o meu à venda.

«Eu e o teu pai estávamos a pensar ir a Lisboa no próximo fim de semana. O que me dizes?»

«Mãe, vou ver, vou ver, e depois logo telefono a dizer alguma coisa. Mas não comece já a fazer planos, que já sei como você é.»

Depois da minha mãe desligar, o Armindo voltou à sala e começámos logo a discutir.

«Armindo, ouve, os meus pais querem cá vir na próxima semana...»

«Ah, finalmente vou conhecer os escultores dessa obra-prima»

«Mas, ouve, eu preferia que não estivesses cá.»

«Ora essa! Como é que é?!»

«Não sejas assim. Não quero dar um desgosto aos meus pais, sobretudo ao meu pai.»

«Tens vergonha de mim.»

«Sabes bem que não é disso que se trata.»

«Os teus pais gostam de ti e acho que acabariam por compreender.»

«Os meus pais não são nada como os teus. Eles pararam no tempo.»

«Tu não tens vergonha de mim. Agora percebo. Tens vergonha de ti.»

Eu não queria ouvir aquilo. Não queria ter aquela discussão. Fui para o quarto, sempre com o Armindo no meu encalço. Despi o roupão e vesti as calças e uma camisa, as primeiras peças de roupa que encontrei. Já estava junto à porta, quando vi que ainda trazia os chinelos calçados. Fui à casa-de-banho e calcei uns ténis.

«Mas onde é que tu vais?»

...

«Não sejas criança!»

...

«António!»

Saí para a rua, batendo com a porta. Andei às voltas. Não sabia para onde ir, apenas sabia para onde não queria regressar. Andei até que começou a chover, primeiro um chuvisco quase imperceptível e depois, sem avisar, umas bátegas gordas e geladas. Procurei abrigo num centro comercial, que me apareceu ao virar da esquina, diligentemente. O cabelo estava empapado e colado ao crânio, a camisa estava completamente ensopada. Dirigi-me à casa-de-banho, que estava deserta, despi a camisa e torci-a, formando-se uma poça de água aos meus pés. Depois, meti a cabeça debaixo do secador de mãos. Voltei a vestir a camisa, que continuava molhada mas já não pingava, e fui para um dos urinóis. Quando urinava tentando acertar nas bolas de naftalina com o jacto fumegante, um rapaz entrou na casa-de-banho. Olhei na sua direcção  e ele ficou imobilizado, hesitando. Acabou por se dirigir para os urinóis, deixando um de intervalo entre nós. Continuámos a olhar um para o outro pelo rabo do olho. A excitação secara-lhe a bexiga. Dei um passo para trás e sacudi o caralho. Ele olhou-o e engoliu em seco. Fechou a braguilha e, quando pensava que o tinha assustado, vi-o encaminhar-se, não para a saída, mas para um dos cubículos, deixando a porta aberta. Fui atrás dele, com o caralho semi-túrgido nos dedos, encontrando-o sentado na sanita e com as calças descidas até aos tornozelos. fechei a porta ao trinco e pus-me diante dele, com o caralho ao alcance da sua boca. Para minha impaciência, demorou demasiado tempo a atenção em redor da glande. Eu não estava para meiguices. Agarrei-o pela nuca, e empurrei-lhe a cabeça até sentir o nariz esborrachar-se contra a maciez do púbis, mantendo-o assim até lhe sentir o vómito subir pelo esófago. Recuei as ancas mas sem tirar o caralho, apenas o suficiente para recobrar o fôlego, voltando logo a massacrar-lhe as goelas com estocadas rápidas e profundas. O rapaz debateu-se, empurrando-me as pernas com as mãos. Agarrei-lhe as mãos e levantei-lhe os braços, prendendo-o pelos pulsos. Quando o empurrei para trás, ouvi a cabeça bater com violência nos azulejos. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, mas deixara de se debater. Martelei-lhe a boca sem me preocupar que me mordesse. Que mordesse!

«Mas você é maluco!?», gritou-me enquanto cuspia uma mistura de sémen, saliva e um liquido escuro, talvez café.

Não lhe disse nada. fechei a braguilha e virei-lhe costas. Antes de abandonar a casa-de-banho, respirei fundo.

Continuava a chover. Lisboa escurecia sem alegria. No passeio, junto a uma das  portas do centro comercial, levantei o braço. Um táxi chiou ao parar no asfalto molhado. Entrei para o banco de trás e disse-lhe para seguir para o Largo de São Mamede. Havia decidido regressar. Teria de encarar o Armindo de qualquer forma. Era em sua casa que estavam as minhas coisas todas. Iria pôr-me nas suas mãos e ele que decidisse. O taxista tentou fazer contacto visual através do espelho retrovisor, mas desviei o olhar para a janela, observando a rua brilhante, a água suja escura escorrendo pelas sarjetas abaixo. Ensaiava o que dizer a Armindo.

Mas todo o discurso que trazia preparado desvaneceu-se no momento em que ele me apareceu à frente. Fui ao seu encontro, ele abriu os braços e recebeu-me no seu peito.

«Desculpa-me. Não sei o que me deu. Hei-de apresentar-te aos meus pais, claro que vou. Não quero continuar a viver como antes.»

«Se gostasses de mim uma ínfima parte do que gosto de ti...» disse ele, deixando o resto da frase morrer na garganta, enquanto os seus lábios quentes me tocavam a pele da testa. Senti cada um dos pêlos da sua barba.

Na véspera da visita dos meus pais, arranjou uma desculpa e ausentou-se de casa, regressando já perto da meia-noite, quando os meus pais se tinham ido embora há muito.







segunda-feira, 5 de março de 2012

B bar (intro #6)

Nos primeiros tempos não falávamos muito. Queres comer; Tens sede. Apenas se falava sobre o que concorria para a sobrevivência do corpo. Sempre que não tínhamos ninguém em nosso redor, o que acontecia duas a três vezes por semana, a boca tinha funções mais importantes e urgentes do que a fala. A fala era prescindível. Quando Armindo pedia o meu corpo, deixava os dedos deslizarem pelos meus flancos abaixo. Tinha mãos fortes e ágeis, instruídas e persistentes, que só desistiam quando me faziam largar um gemido. Eu começava a tremer, a boca era inundada por uma torrente copiosa de saliva, a pele do rosto e do torso inflamavam-se e tornava-se tórrida e extremamente sensível, capaz de captar a mínima oscilação da temperatura. Encostava os quadris às minhas nádegas e arfava no meu pescoço, entre a orelha e a clavícula, encrespando-me a pele.

«Nunca conheci ninguém como tu...»

«Aposto que o dizes a todos os homens com quem já foste para a cama...», disse ele, com o  rosto munido de um ar sério.

«És mesmo parvo!», respondi-lhe depois de levantar o rosto do seu peito e de lhe ver a comissura dos lábios estremecerem. esforçando-se por conter uma gargalhada eminente.


Uma certeza que guardo até hoje: No caso de não ter ido para a cama no fim da noite em que o conheci, jamais me teria envolvido com o Armindo. Eu lera o Banquete e o Fédon. E ao ver o Armindo pela primeira vez tive a sensação de que já nos conhecíamos, talvez desde um tempo anterior ao nosso nascimento. Uma grande banalidade. Mas a paixão é pródiga em discursos banais que soam como verdadeiras epifanias. A paixão assemelha-se à poesia na forma como ilumina evidências que passam despercebidas na mesmice dos dias.

Só começámos a falar três meses depois de nos conhecermos, uma noite de domingo, no fim de termos aplacado o egoísmo com que fazíamos amor, pois o nosso sexo era egoísta, como se soubéssemos que deixaria de nos satisfazer no dia em que nos preocupássemos com o prazer um do outro, Armindo aproveitou a escuridão evidenciadora dos corpos para me sussurrar:

«Assusta-me o dia em que vais acordar convencido de que a paixão acabou.»

Enganara-me. Armindo não era forte. E eu sempre soube que só seria capaz de amar um homem que esconde a vulnerabilidade atrás de uma couraça deixando, porém, vislumbrá-la por momentos quase imperceptíveis. Também soube que a paixão acabara naquele momento. Ele também o soube.

Na manhã seguinte. depois de vir da loja de conveniência onde foi buscar pão e leite, pediu-me para que fechasse os olhos. Pegou-me na mão e atou-me algo em redor do anular.

«Podes abri-los!»

O atilho plastificado que fechara o saco do pão fora transformado em anel.

«Tenho muito espaço vago no roupeiro e no armário da casa-de-.banho.

Era uma aliança.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

B bar (intro #5)

«Porque é que decidiste trazer-me contigo para casa?»

Mais de metade da tarde de domingo já tinha passado e, depois de se ter enganado a fome com umas tostas e uns restos de caril que o Armindo tirou do frigorifico, estavamos de volta à cama. A rua estava em silêncio, nem parecia ser Lisboa lá fora.

«Porque quiseste vir.»

Mas o que se passava comigo? Depois de nos termos engatado daquela forma tão despudorada e do espanto com que me apercebi de que estavamos à vontade um com o outro desde o primeiro momento, a minha insegurança não devia estar a falar por mim. Ele não estava a falar a sério - senti isso quando lhe fitei, de baixo para cima, o rosto e vi-lhe os olhos sorridentes.


Ainda era cedo quando entrei no B, nem seria meia-noite. Vi-o do outro lado do balcão, tirando copos de um tabuleiro. Olhei para as costas dele e para os ombros, e para a linha recta perfeita na nuca que o barbeiro lhe fizera ao cortar o cabelo, e ao mesmo tempo perguntava-me se seria o homem de quem o Rafel me falara.

Atravessei o bar e, enquanto o fazia, notei que arfava um pouco. Estava a fazer algo que não era hábito. Nunca antes fora sozinho a um bar. Sinto-me sempre desconfortável sobre escrutínio alheio e, nos bares gays, tirando os mais jovens e os mais velhos, ninguém conversa, limitam-se a tirar as medidas uns aos outros.

«É um Joaquim António, por favor!»

Ele virou-se e lançou-me um olhar entre o surpreendido e o confundido,

«Desculpa?...»

«Um gin tónico!»

«Ah! Joaquim Antónios. Não temos, acabaram de se acabar. Agora só Armindos.»

Era ele, não me enganara. O Rafael descrevera-o muito bem.

«Se conseguir espremer um Armindo para dentro de um copo, bebo-o.»

«Um copo...? já espremi o Armindo para muitos sítios, agora, um copo... há sempre uma primeira vez.»

O meu coração batia com força. A minha ousadia não iria mais longe; aliás, estava espantado comigo, porque não era de fazer aquele tipo de conversa com desconhecidos.

«É a primeira vez que cá vens, não é?»

«É. Foi o Rafael que me falou deste bar.»

«Ah! o Rafael... então, deves ser o António... Já ouvi falar de ti.»

Pôs o copo de gin diante de mim, mas hesitei em agarrá-lo. As mãos tremiam. Pensava nas razões que levam um ser humano a reagir daquela forma diante de alguém que acaba de conhecer.

Um grupo ruidoso acabava de entrar e Armindo, fazendo uma careta na sua direcção, foi atendê-los. De vez em quando, os seus olhos vagabundevam até encontrarem os meus e, então, sorria.

Ia para acender um ciugarro quando alguém me bateu no ombro e, sem uma palavra, apontou para o distico alertando ser lugar de não fumadores, sorrindo e encolhendo os ombros. Dirigi-me para a porta e vi, pelo canto do olho, os lábios de Armindo formarem uma palavra que não chegou a se ouvir: MERDA.

«Ah, afinal estás aí» Ouvi Armindo, que acabara de parar na soleira da porta, «pensei que já tivesses ido embora»

«Já? Não. Ainda é muito cedo.»

«Dás-me uma passa?»

Ia a tirar o maço do bolso das calças, para lhe dar um cigarro, mas ele interrompeu-me, dizendo que não tinha tempo para estar ali a fumar um cigarro inteiro.

Passei-lho para os dedos. Eram esguios e compridos, com as falanges peludas.

«Se querias trocar saliva, há outras maneiras mais cómodas para fazê-lo.», disse-lhe, depois de mo devolver.

«Como? Assim?

E aproximou o rosto do meu.

«Ah, então, já estão assim?! Quero ser o padrinho, hein!»

Era o Rafael, que escolheu o momento mais inoportuno para aparecer.

Armando voltou a entrar. Mas, quando nem tinha dado dois passos nã direcção do balcão , voltou a espreitar pela ombreuira da porta.

«Nem te atrevas a ir embora sem te despedires de mim.»

É claro que nem cheguei a ir embora.




quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

B bar (intro #4)

«Não tenho paciência para essas tontas que parecem ter visto pornografia demais e são incapazes de conceber a hipótese de que o sucesso é alcançável por quem não é jovem nem padronizadamente belo», dizia Armindo, quando o dia, ainda fosco, ameaçava entrar através das frinchas dos estores mal fechados. «São todos muito cultos, muito cosmopolitas e, depois vamos a ver, são tão preconceitosos quanto alguém que nasceu, viveu e morreu sem sair da sua aldeia; aliás, são bem piores, porque têm todas as oportunidades para estarem expostos à diferença, até de uma forma inadvertida, e, se o quiserem, podem dispor-se a entender tudo o que foge aos conceitos do rebanho, mas não, não é isso que se passa, preferem lançar-lhes o seu sorrizinho sarcástico e o olharzinho desdenhoso. No entanto, não foi só isto que fez esgotar a minha paciência.

»Até sinto simpatia e solidariedade por aqueles que resolvem assumir, no quotidiano, os seus maneirismos; ainda que a visão de tais comportamentos me provoque uma súbita impotência, acho que é uma atitude de quem os têm no sítio. Agora aqueles cidadãos anónimos que, mal vêem a estátua do Camões, desatam a esbracejar como galinhas... não há pachorra. E aqueles casalinhos que só o são no Bairro Alto fora de horas? Todos esses merecem o meu menosprezo.

»Não precisas de dizer nada. Queres dizer-me que a minha conversa também é a manifestação de uma mente preconceituosa. Tens razão, e já não tenho idade, nem vontade, para mudar. Não vamos a lado nenhum se continuarmos a ser uns santinhos nem a dar a outra face sempre que somos alvo de agressão de quem deveria estar a nosso lado.

»Talvez eu ache que, afinal, não sou tão macho quanto aparento  e precise de ir roubar um pouco da macheza a gajos masculinos, assim como tu, » disse Armindo, escorregando pela cama, «e tornar-me num masculinófago.», continuou, enquanto me mordia a nuca e, depois de me puxar para si pela cintura, encolherando-se. «Mas é que nem penses, estou exausto. Agora não há nada para ninguém», concluiu, depois do seu braço roçar-me a erecção.