segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Eu, Marco e o negro

O belo e másculo Marco, ou talvez seja melhor dizer o belo porque másculo Marco, tem estado a sorrir e a piscar os olhos na minha direcção ao mesmo tempo que conversa com os amigos, velhos frequentadores deste bar do Príncipe Real, que estão na ponta oposta do balcão. Sei que se chama Marco e é italiano porque já falei com ele na internet, embora não tenha sido capaz de chamar-lhe a atenção para mais do que uma dúzia de frases. Veste calças de ganga e t-shirt, tudo preto, que lhe sublinham as coxas poderosas e o planalto do peito; escanhoou a cabeça há pouco, talvez esta noite, e sou incapaz de parar de olhar para a veia pulsante que lhe sobe rente a uma das orelhas, apetecendo-me lambê-la. Um novo grupo de homens irrompe pela porta e o bar encolhe; fico mais perto de Marco. Um negro que veio com aquele último grupo olha para mim enquanto não vê Marco. Depois, cumprimentam-se com alguma intimidade, trocam algumas palavras e uns acenos de cabeça. Por fim, Marco vem ter comigo.

"Gostas dele? ele acha-te muito giro."

"O negro?"

"Sim."

"Bem..."

"Nem por isso, Tu és bem mais interessante."

Regressa ao seu grupo de amigos. Um deles é uma matrafona. veste uma blusa de seda com grandes flores estampadas e uma calças amarelas que acabam nos tornozelos, peças de roupa evidentemente femininas; uma quantidade enorme de pulseiros chocalham-lhe nos pulsos peludos, numa mão tem um cigarro fininisso e comprido e na outra um cálice de Bayleys. Marco bebe cerveja pela garrafa. Olho para Marco.

O negro vai ter com ele. É muito magro e tem umas feições muito delicadas. Falam enquanto olham na minha direcção. O negro aproxima-se.

"Achas que sou atrente?"

"Bem..."

"Não gostas de pretos?"

Hesito. "Não é verdade que não goste", digo-lhe. "Há até bastantes que são bem giros."

"Então, e eu, achas que faço parte desses que são bem giros."

"Sim, mas não esta noite"

"Não esta noite é o mesmo que dizer não.

Faço um esforço para não ofendê-lo. "Não, não é a mesma coisa. Talvez amanhã."

"Amanhã é nunca."

"Sorte a minha!", exclamei para mim. "Queria apenas dizer que hoje estou cansado."

"Está bem. Amigos como dantes."

Suspiro e, depois de um silêncio, ele diz-me, olhando para Marco que de vez emquando olha na nossa direcção, "Gostas do italiano?"

"Sim."

"Chama-se Marco. É florista na loja do namorado, que é uma velha com montes de papel."

"Ele disse-me chamar-se Marco,  mas não mencionou qualquer namorado." Sorrio.

"Não gostas de pretos, pois não?", pergunta, acusadoramente.

"Oh, sim, gosto, gosto. Já te disse até que acho alguns bastante atraentes."

"Alguns mas nenhum em particular."

"Sorte a minha!"

Volta finalmente para o seu grupo de amigos, mas continua sem despegar os olhos de mim. marco continua na conversa com os amigos, ainda sorri, mas os seus olhos já não se encontram com os meus. Aproveito um momento em que ele parece afastar-se dos amigos para ir ter com ele.

"O que é que disseste ao negro?"

"Eu? Na-da! Ele é que quer conhecer-te."

"Acho que ficou zangado comigo"

"Esquece isso. Amanhã já não se lembrará de nada."

Entretanto começa a dançar ao som de Shakira e eu aproveito para ir à casa de banho, para onde Marco nem o negro me seguiram. No meu regresso choco com Marco, que continua afazer a sua imitação de Shakira. Com os olhos fechados, nem se dá conta do meu pedido de desculpa. Ao voltar ao meu antigo lugar junto ao balcão, reparo que o negro já se foi embora e lamento-o. Não há quem não goste de ser admirado. Levanto-me e preparo-me para sair. Quero perguntar a Marco se quer boleia para Almada. O meu carro está estacionado no Príncipe Real, mas a sua imitação da irritante Shakira deixa-o incomunicável.

À porta, despeço-me de Edy, um dos dois donos do bar. "Já vais, querido?" Sorrio-lhe e encolho os ombros. Começo a subir a rua, esperando encontrar o negro á minha espera no jardim. Quão triste um homem consegue ser?!" Conduzo de volta aos subúrbios. Sozinho.






quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Regresso a casa

Quando a minha mãe foi acompanhar o meu pai ao jazigo da família, tive que regularizar as partilhas da Herdade. Era ainda adolescente quando lá estivera pela última vez e pouco me lembrava da casa debruçada sobre o barranco e das brincadeiras com o Pedro, o filho dos caseiros. Era exímio a trepar aos chaparros, descendo depois cuidadosamente com uma cria de melro ou de gaio no côncavo das mãos. Sabia como atravessar uma manada sem que uma vaca investisse contra ele. Nunca, mas nunca te ponhas entre um vitelo e a mãe. Os tractores ou quaisquer alfaias agrícolas não tinham segredos para ele. E era também mágico, sabendo o que fazer para que um marmeleiro passasse a dar pêras ou nêsperas em vez de marmelos. Distinguia de olhos fechados os cogumelos e conhecia até o interior da terra, revelando rapidamente onde as túbaras se ocultavam. Era o único jovem em quilómetros e nunca percebi por que não se ia embora.

Naquela sexta-feira à tarde, ao sair do alcatrão e tomar o aceiro na direcção da Herdade, não estava à espera de encontrá-lo. Apesar de ser mais velho do que eu, ainda que apenas dois ou três anos, cumprimentou-me com uma reverência antiquada - a mesma que levara os seus pais e tratarem-me por menino depois de eu ter começado a fazer a barba - e insistiu para me levar as malas. Depois de entrarmos em casa, perguntei-lhe se ainda tinha a velha e roncante V5. Assentiu, e pedi-lhe que me levasse à barragem.

Os dentes evidenciaram-se no rosto tisnado por dias e dias passados ao ar livre. Quando a solidão, a tristeza ou alguma dor imprecisa tomavam conta dele, sentava-se ali, diante das águas. Pelo caminho, aproveitei as subidas íngremes para me segurar à sua cintura e encostar o rosto ao ombro de Pedro, que sorria para o espelho da motorizada. Na superfície da água, entre o ocaso, misturavam-se as nuvens e a sombra dos sobreiros. Acho que vou comprar a parte da minha irmã. Não sirvo para professor. Não suporto a falta de interesse dos jovens pela instrução. Mas não sei o que fazer com isto. E pensei, sem dizer: Nem sei o que hei-de fazer contigo.

Não há nada que não se aprenda, disse ele. E, depois, se te ensinei a nadar nestas águas, também posso ensinar-te a tratar da Herdade. Esta é a tua casa. Depois de pegar num graveto, acrescentou: E também a minha.

Um súbito golpe de vento açoitou a superfície da barragem, dois patos bravos voaram, com as penas brilhando sob a última réstea  de sol. Aproximei o rosto do de Pedro e arrependi-me imediatamente. Ele afastou o rosto. Desculpa, foi uma tontice. Negou com a cabeça. Não, não estás enganado. E então foi ele quem me beijou.