Os Amado, António Libério e Maria da Piedade, um casal no final da casa dos trinta, alugam uma casa junto à praia onde os meus pais têm um restaurante. Durante duas semanas, uma no final de Julho e outra no início de Agosto, o antigo povoado de pescadores, entretanto transformado em estância de veraneio, vê-os como o exemplo da felicidade conjugal, que só não é tida como completa pela ausência de filhos. Trocam caricias sempre que os beijos e os abraços não podem ser entendidos como uma senha para o sexo e ninguém os viu amuados um com o outro uma única vez, quando há mais de uma década que aqui vêm fazer férias.
Certa tarde, quando eu aproveitava a pausa intercalar entre o almoço e o jantar para apanhar um pouco de sol, calhei estender a toalha não muito longe do seu guarda-sol.
“Acho que vou dar uma corridinha... Tenho de abater esta pançazinha”, disse António enquanto apertava o pneu entre o polegar e o indicador. Acrescentara uns 11 quilos ao peso que tinha antes de se casar: um por cada ano de matrimónio.
“Mas não vás muito longe. Temos mesa reservada”, alertou-o Piedade, sem tirar os olhos do livro aberto sobre os joelhos. Tinha sempre o cuidado de não mostrar as suas leituras, como se tivesse pudor ou vergonha de que se soubesse que gostava dos romances de Danielle Steel. (No dia anterior, enquanto lhe servi o lanche, ela distraiu-se e eu vira a capa do livro.)
António avançou aos ziguezagues até à zona de rebentação e afastou-se do ajuntamento dos banhistas. O areal perde-se de vistas mas as pessoas insistem em se concentrar junto à torre de vigia do nadador-salvador, no final do passadiço que atravessa o areal desde as últimas casas do povoado até quase à beira de água.
Correu na direcção do nascente, onde o areal começa a elevar-se e forma um cordão dunar com as copas dos pinheiros espreitando sobre a sua crista. É uma zona de dificil acesso a partir da estrada que bordeja o pinhal em direcção ao sul e fica a mais de meia hora a pé do povoado, pelo que a praia mantem-se aí selvagem, sendo esse isolamento aproveitado por nudistas.
António parou quando aí chegou. O rosto denotava o esforço de um corpo desabituado ao exercício fisico que a distância implicou para ser percorrida a correr. Curvou-se e apoiou as palmas das mãos nos joelhos e, depois de recuperar o fôlego, subiu a duna.
O pinhal era sulcado por vários carreiros que se cruzavam para se separarem mais adiante e depois bifurcarem-se novamente. Após ter permanecido de pé no cimo da duna por alguns minutos, António decidiu embrenhar-se por entre os pinheiros e os maciços de arbustos. Ao virar uma moita de camarinhas deu com um pinheiro que o vento tinha obrigado a crescer rente ao chão e cuja copa ocultaria quem entrasse na sua sombra. Despiu os calções e, amarfanhando-os até desaparecerem no punho fechado, ficou à espera.
Não era o único homem que andava por ali como se procurasse algo que entretanto tivesse perdido. Dois homens aproximavam-se a passo acelerado, um a pouca distãncia do outro mas a suficiente para se perceber que não estavam juntos. O primeiro a chegar junto dele tinha os pêlos do peito completamente brancos e o rosto com as marcas evidentes de que tratava-se de alguém que ultrapassara a barreira dos sessenta, e António colou os olhos no chão durante todo o tempo que o velho demorou a afastar-se. O segundo era ainda jovem como evidenciava o olhar de miúdo e o corpo seco de adiposidades de quem têm ainda tem um metabolismo a mil á hora. António sorriu-lhe e, com a erecção colada à barriga, entrou no esconderijo formado pela copa rasteira. O rapaz, hesitante, seguiu-o.
O que se passou a seguir aconteceu sem terem proferido qualquer palavra. Beijaram-se sem pressa e entregaram-se sem reserva, pelo menos até António sentir os dentes do outro cerrarem-se sobre um dos ombros. Ergueu a mão direita e mostrou-lhe a aliança, como se lhe dissesse “por favor, nada de marcas”.
“Vemo-nos por aí”, disse António no fim, apressando-se a regressar ao areal. Pousou os calções num tronco trazido até ali pelas ondas durante o inverno e entrou na água, que estava morna. Deu ums braçadas e lavou as escamas de sémen coladas aos pêlos púbicos. Olhou para o sol e, soltando uma praga, começou a correr.
“Vamos?! A corrida abriu-me o apetite” disse ao chegar junto de Piedade que, sem uma palavra, guardou na bolsa e, enquanto o marido fechava o guarda-sol, começou a sacudir a toalha. Deram as mãos e ofereceram as costas ao sol que já começava a tocar na água, lá ao longe.
Ao jantar, sentados a uma das mesas encostadas às vidraças panorâmicas, fizeram aquilo que os casais supostamente fazem: falaram sobre a comida, comentaram sobre a excelências das condições atmosféricas em relação a anos anteriores e, de vez em quando, pousaram os talheres para esticarem as mãos por cima da mesa e, enganchando os dedos, sorrirem um para o outro. Fizeram tudo isto enquanto os outros comensais os olhavam sem conseguirem disfarçar a inveja e eu, num corropio entre a cozinha e a sala de refeições, dizia, entredentes: “mentirosos, mentirosos...” Numa das minhas vindas à sala das refeições, Piedade olhou para mim e disse qualquer coisa a António, que, como estava de costas, teve que olhar por cima do ombro e depois aquiesceu com a cabeça. Ao passar pela sua mesa, para servir o jantar a um casal de belgas cuja filha ruborizava sempre que me via, ouvi Piedade dizer: “... bom-gosto. O rapaz é bem giro.”