domingo, 29 de maio de 2011

Um casal

Os Amado, António Libério e Maria da Piedade, um casal no final da casa dos trinta, alugam uma casa junto à praia onde os meus pais têm um restaurante. Durante duas semanas, uma no final de Julho e outra no início de Agosto, o antigo povoado de pescadores, entretanto transformado em estância de veraneio, vê-os como o exemplo da felicidade conjugal, que só não é tida como completa pela ausência de filhos. Trocam caricias sempre que os beijos e os abraços não podem ser entendidos como uma senha para o sexo e ninguém os viu amuados um com o outro uma única vez, quando há mais de uma década que aqui vêm fazer férias.

Certa tarde, quando eu aproveitava a pausa intercalar entre o almoço e o jantar para apanhar um pouco de sol, calhei estender a toalha não muito longe do seu guarda-sol.

Acho que vou dar uma corridinha... Tenho de abater esta pançazinha”, disse António enquanto apertava o pneu entre o polegar e o indicador. Acrescentara uns 11 quilos ao peso que tinha antes de se casar: um por cada ano de matrimónio.

Mas não vás muito longe. Temos mesa reservada”, alertou-o Piedade, sem tirar os olhos do livro aberto sobre os joelhos.  Tinha sempre o cuidado de não mostrar as suas leituras, como se tivesse pudor ou vergonha de que se soubesse que gostava dos romances de Danielle Steel. (No dia anterior, enquanto lhe servi o lanche, ela distraiu-se e eu vira a capa do livro.)

António avançou aos ziguezagues até à zona de rebentação e afastou-se do ajuntamento dos banhistas. O areal perde-se de vistas mas as pessoas insistem em se concentrar junto à torre de vigia do nadador-salvador, no final do passadiço que atravessa o areal desde as últimas casas do povoado até quase à beira de água.

Correu na direcção do nascente, onde o areal começa a elevar-se e forma um cordão dunar com as copas dos pinheiros espreitando sobre a sua crista. É uma zona de dificil acesso a partir da estrada que bordeja o pinhal em direcção ao sul e fica a mais de meia hora a pé do povoado, pelo que a praia mantem-se aí selvagem, sendo esse isolamento aproveitado por nudistas.

António parou quando aí chegou. O rosto denotava o esforço de um corpo desabituado ao exercício fisico que a distância implicou para ser percorrida a correr. Curvou-se e apoiou as palmas das  mãos nos joelhos e, depois de recuperar o fôlego, subiu a duna.

O pinhal era sulcado por vários carreiros que se cruzavam para se separarem mais adiante e depois bifurcarem-se novamente. Após ter permanecido de pé no cimo da duna por alguns minutos, António decidiu embrenhar-se por entre os pinheiros e os maciços de arbustos. Ao virar uma moita de camarinhas deu com um pinheiro que o vento tinha obrigado a crescer rente ao chão e cuja copa ocultaria quem entrasse na sua sombra. Despiu os calções e, amarfanhando-os até desaparecerem no punho fechado, ficou à espera.

Não era o único homem que andava por ali como se procurasse algo que entretanto tivesse  perdido. Dois homens aproximavam-se a passo acelerado, um a pouca distãncia do outro mas a suficiente para se perceber que não estavam juntos. O primeiro a chegar junto dele tinha os pêlos do peito completamente brancos e o rosto com as marcas evidentes de que tratava-se de alguém que ultrapassara a barreira dos sessenta, e António colou os olhos no chão durante todo o tempo que o velho demorou a afastar-se. O segundo era ainda jovem como evidenciava o olhar de miúdo e o corpo seco de adiposidades de quem têm ainda tem um metabolismo a mil á hora. António sorriu-lhe e, com a erecção colada à barriga, entrou no esconderijo formado pela copa rasteira. O rapaz, hesitante, seguiu-o.

O que se passou a seguir aconteceu sem terem proferido qualquer palavra. Beijaram-se sem pressa e entregaram-se sem reserva, pelo menos até António sentir os dentes do outro cerrarem-se sobre um dos ombros. Ergueu a mão direita e mostrou-lhe a aliança, como se lhe dissesse “por favor, nada de marcas”.

Vemo-nos por aí”, disse António no fim, apressando-se a regressar ao areal. Pousou os calções num tronco trazido até ali pelas ondas durante o inverno e entrou na água, que estava morna. Deu ums braçadas e lavou as escamas de sémen coladas aos pêlos púbicos. Olhou para o sol e, soltando uma praga, começou a correr.

Vamos?! A corrida abriu-me o apetite” disse ao chegar junto de Piedade que, sem uma palavra, guardou na bolsa e, enquanto o marido fechava o guarda-sol, começou a sacudir a toalha. Deram as mãos e ofereceram as costas ao sol que já começava a tocar na água, lá ao longe.

Ao jantar, sentados a uma das mesas encostadas às vidraças panorâmicas, fizeram aquilo que os casais supostamente fazem: falaram sobre a comida, comentaram sobre a excelências das condições atmosféricas em relação a anos anteriores e, de vez em quando, pousaram os talheres para esticarem as mãos por cima da mesa e, enganchando os dedos, sorrirem um para o outro. Fizeram tudo isto enquanto os outros comensais os olhavam sem conseguirem disfarçar a inveja e eu, num corropio entre a cozinha e a sala de refeições, dizia, entredentes: “mentirosos, mentirosos...” Numa das minhas vindas à sala das refeições, Piedade olhou para mim e disse qualquer coisa a António, que, como estava de costas, teve que olhar por cima do ombro e depois aquiesceu com a cabeça. Ao passar pela sua mesa, para servir o jantar a um casal de belgas cuja filha ruborizava sempre que me via, ouvi Piedade dizer: “... bom-gosto. O rapaz é bem giro.”

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Encurralados

Era Eduardo Braço-Forte, com quem tive um caso amoroso cujo resultado infrutífero foi de inteira responsabilidade da minha então quase total inexperiência nas intrincadas matérias do coração: o terror sudoroso e taquicárdico de que a assunção de uma relação me obrigasse a anunciar aos meus familiares a secreta condição de homossexual, porque a mãe não descansaria até saber as razões da saída de casa do filho único, fez com que tivesse chegado aos 28 quase virgem... Mas como ia a dizer, Eduardo Braço-Forte era um homem que, como é vulgar encontrar entre os amantes da vida nocturna, tinha uma idade indefinida e, apesar de estar já a resvalar para os 50, todos diziam que teria entre 27 e trinta e muitos. Os olhos de gato, grandes e rasgados, que se semi-cerravam debaixo do sol, davam a ideia de que olhava para o mundo com desconfiança, os malares aguçados tornavam mais seco o rosto cheio de ângulos rectos e que terminava num maxilar bem delineado. Castigava o corpo com uma disciplina castrense através de pesos, máquinas e um eterno regime alimentar pobre em hidratos de carbono, tendo-o assim transformado numa fortaleza de músculos que na verdade era uma prisão para tudo o que considerava fraqueza. A sua aparência fazia-o um sério candidato para ser escolhido para desempenhar o papel de herói de um filme de acção; mas Eduardo não era actor. Também era verdade que aquela imagem de um homem que destila testosterona em vez de suor fazia com que ninguém o imaginasse portador de quaisquer inseguranças ou que seria capaz de nutrir sentimentos profundos por outras pessoas que não ele.

Eram onze e meia de uma noite chuvosa de dezembro. Eu andava pelo quarto à procura de uma meia que a ardência do reencontro com Eduardo, depois de uma semana sem nos termos visto, fez desaparecer, tal foi a rapidez e anarquia quando duas horas antes nos despimos. Eduardo estava recostado na cabeceira da cama fitando em silêncio a minha busca frenética. Estava com ar de quem tentava controlar a saída de um comentário capaz de começar uma discussão e eu, consciente de que o temporal poderia entrar no quarto a qualquer momento, evitava coincidir os meus olhos com os dele.

- Manuel – disse Eduardo – não achas que o desaparecimento misterioso da meia é um sinal de que deves passar o resto da noite comigo?

- Sabes bem que não posso.

- Sei? - perguntou, amarfanhando o lençol com os dedos da mão direita e cerrando o queixal.

- E o que diria eu em casa?

- É esse o teu problema? - disse, deixando permanecer no rosto uma expressão de incredulidade

- Compreendo-te – respondi, fitando-o – Falar é fácil. Não sei se posso concordar contigo.

- Porra Manuel! – exclamou, levantando-se da cama – olha bem para ti – continuou, apontando para o espelho de corpo inteiro encostado à parede defronte dos pés da cama de casal – não tarda nada tens 30 anos e continuas com medo dos teus pais ou, o que é pior, com medo de ti.

Ficámos de pé durante alguns segundos, cada vez mais assustados com o rumo que a sucessão de frases poderia tomar.

- Não sei se já reparaste, mas nunca passaste a noite comigo. Chegas, fodes e vais embora – disse enquanto se encaminhava para a cómoda – é só isso que queres de mim? - perguntou, abrindo uma das gavetas – toma! - continuou, empunhando um par de meias na minha direcção.

- Sabes bem que não é isso – disse ao agarrar nas meias.

- Mas é o que parece – retroquiu – Calça-te lá então, levo-te a casa.

- Não é preciso. Não quero dar-te trabalho

- Não queres dar trabalho ou não queres que te vejam chegar na companhia de um estranho?

- Não ponhas palavras na minha boca – disse, enquanto calçava o último sapato – em meia hora estou em casa e, depois, não vale a pena saires de casa com este temporal.

Fitava-me novamente como se não acreditasse no que acabara de ouvir.

- Não sei se gosto da direcção que isto está a tomar – disse, começando a vestir-se.

- Isto o quê? - Perguntei.

- Isto! Sabes bem!

- Não sei se realmente saberei.

- Isto! disse, apontando para mim e para ele. -  Nós. - Sentou-se na beira da cama e depois continuou - talvez tenha chegado a altura de conversarmos seriamente.

- Amanhã... Amanhã conversaremos sobre tudo o que desejares e durante o tempo que precisares. Mas hoje não. Ainda perco o comboio.

- Amanhá. Sempre amanhã – disse ao encaminhar-se para a casa da banho, fechando a porta atrás de si.

- Sabes que te amo – disse-lhe, encostando-me à porta – mas preciso de tempo.

Eduardo saiu da casa-de-banho e, para meu espanto, abraçou-me e apertou os lábios contra a minha testa. Senti um grande alívio. Mas não durou muito.

- Acho que será melhor deixar de nos vermos

- Se é isso que desejas, - disse, pondo o ónus da decisão nele.

- Não o desejo, mas será o melhor. - Libertou-me do abraço e agarrou no porta-chaves pousado no aparador. - Anda!

- Não é preciso.

- Levo-te só até à estação. Bem sei que não me deixas levar-te a casa.


Fizemos a viagem em silêncio. No parque de estacionamento da estação de Sete Rios hesitei. Não sabia como despedir-me. Adivinhando o meu constrangimento, Eduardo apertou-me o joelho e desejou-me boa viagem e boa sorte. Saí. Continuava a chover e corri para a porta da estação. Olhei para trás por cima do ombro; ele ainda não tinha regressado a casa, mas os vidros embaciados impediam-me de vê-lo. Quando o comboio chegou, sentei-me numa carruagem vazia e encostei a face ao vidro da janela, fechando os olhos. - Eu gosto dele. - O comboio reiniciou a marcha. - Não, não gosto. Eu amo-o – continuei a a dizer para mim mesmo. - Abri os olhos – que fizeste tu? - perguntei ao meu rosto reflectido na janela.



Deixei passar dois dias e só depois lhe telefonei. Receava que reconhecesse o meu número no ecran do telemóvel e ignorasse a chamada. Mas não o fez. Talvez tivesse decidido passar uma esponja sobre a nossa discussão.

- Já tenho as meias lavadas, agora é so combinar um dia para entreguá-las.

- Deixa estar – respondeu secamente – não é preciso. – e desligou.

- Estúpido, Manuel. És tão estúpido.

domingo, 15 de maio de 2011

Misoginia ou outra coisa qualquer

Se há um momento exacto para isto ter começado, e se nos quisermos manter ao nível da psicologia veiculada pelas revistas femininas, então tenho de dizer que foi aos nove anos. Estava no quarto a tentar adormecer, o que não era tarefa fácil nem para a criança sempre a correr que eu era e de quem se esperava uma breve queda no sono: as molas do colchão de meus pais chiavavam, agressivamente; mas, ao contrário do esperado quando aquele ruído acabasse, não ouvi depois os habituais risinhos, sussurros nem muito menos os passos de pés descalços na direcção da casa de banho, o que sempre me dizia que o silêncio não tardaria a ser devolvido à casa: fui antes surpreendido pelos gritos de minha mãe. As tripas enovelaram-se-me e, assustado,  vi-me, sem saber como, no quarto diante do meu.  Ela ainda estava em cima do meu pai que, embora se lhe assemelhasse em tudo, já não era um homem e mais parecia um boneco de cera. Foi nesse momento que tudo começou. Pode escrever o que lhe digo. Foi a partir dessa visão que comecei a odiar a minha mãe. Afianço-lhe. Era uma criança, é certo, um ser ainda em formação, mas tive a plena consciência de que a odiava e de que não havia volta a dar. E enquanto o tempo foi passando, a minha faculdade de odiar foi amontoando até transbordar. Ela havia cometido aquele que por ventura é o único crime perfeito, mors in coitem. Não tivesse posto termo à própria vida (não, não a matei), talvez o meu ódio tivesse ficado circunscrito e não odiasse, hoje, todas as mulheres. Todas, sem excepção. Claro que não me tornei num inadaptado; aprendi a ser educado, simpático e até cortês com as mulheres, mas o mesmo não é dizer que o forte asco causado pela presença feminina em meu redor tivesse diminuído para patamares toleráveis ou desaparecido. É por isso que só me dou bem com outros homens. Tivesse eu o dom da omnipotência, instituiria uma federação mundial só de homens, uma falocracia; as mulheres seriam condenadas às câmaras de gás e aquele que tivesse o maior caralho seria o mais poderoso.

Não, não olhe para mim assim. Como é que consegui a faca que tenho na mão, e que uso pretendo dar-lhe? Ora, doutora, considero-a apenas nojenta e não estúpida. As nossas prisões são uns verdadeiros jardins de delícias, não só porque não há cadeias mistas, mas porque tudo ali se arranja, desde que se tenha dinheiro. Diz-me que vou agravar a minha pena, nunca sairei daqui? Mas eu não quero ser libertado. Se lhe cortar a garganta será menos uma que anda por aí a puxar-me o vómito para a boca. E depois, sabe, até melhor do que eu, que só ficarei curado no dia em que as mulheres desaparecerem do cimo da terra. Agora esteja quieta. É um segundinho apenas. Não leu o meu processo? Trabalhei num matadouro. Uma picadazinha no peito e já está. Rápido e limpo.

Foto: Nuno Lopes