segunda-feira, 20 de junho de 2011

O casamento de João Maria

Enquanto Maria João se afastava da piscina improvisada, através do empedrado do caminho do laranjal, na direcção da cozinha, com o intuito de fazer um chá gelado para melhor suportar aquele dia de calor africano, levando, na mesma mão com que prendia a toalha junto ao peito liso, uma das poucas hastes não floridas da menta que, para gáudio das abelhas ufanas, crescia, viçosa e olorosa, junto às paredes do tanque grande, onde a água da mina era armazenada e em cuja beira se sentava Júlio que, após ela ter desaparecido através das portas de correr, descruzou as pernas, com que até então ocultara dolorosamente uma curta mas robusta erecção, e, na expectativa de debelar não tanto a excitação inoportuna mas a raiva que impelira-o a aparecer na Quinta da Mina sem se fazer anunciar, deslizou para água e, sentido-a apertar-lhe os testículos, mergulhou sem hesitações, emergindo a escassos centímetros de João Maria que, apesar de estar a ser vergastado pelo sol há largos minutos, continuava deitado de bruços sobre um colchão insuflável.

- Ainda furas o colchão! - disse, pressentindo por que João Maria se recusava a mudar de posição ia para um quarto de hora.

- Parvalhão! respondeu-lhe João Maria, escorregando para a água.

Mas a forma como o disse fez-lhe crer que a entrada em cena daquela mulher escanzelada e tão jovem quanto falha de atractivos não punha em causa uma amizade tão longa como a deles, o que foi confirmado pelo que aconteceu depois de João Maria vir à tona: apoiou o peso do seu corpo nos ombros de Júlio, obrigando-o a mergulhar e aí  permanecer até os pulmões começarem a arder, numa brincadeira mais apropriada a adolescentes do que a dois homens a chegarem aos cinquenta. No entanto, subsistia a incerteza sobre a garantia de que continuaria a usufruir do corpo do amigo depois do casamento.

No caminho para a Quinta da Mina, apenas um dia depois de um amigo comum lhe ter dito que João Maria estaria prestes a casar e de a surpresa de tal noticia tê-lo feito apenas perguntar: "Casar? e com uma mulher?", acumulara a vontade de humilhá-lo, o que só seria possível se a noiva continuasse na ignorância do facto de que eles eram amantes desde a adolescência. Estava zangado por não lhe ter dito nada quando estiveram juntos numa pensão do Bairro Alto nem há uma semana; pensava que estava a ser descartado como um ocasional parceiro de sexo. Chegara ao portão da quinta que estava sempre aberto por a estrada, que a cortava ao meio, fazer parte de um percurso pedonal instituído pelo Parque Natural e ser usada tanto por caminhantes, cicloturistas como vigilantes florestais e bombeiros, estacionou ao lado de uma pick up na pouca sombra de um par de carrasqueiros e apitou três vezes, imprimindo na buzina toda a sua fúria. 

- Estamos aqui - Ouviu do outro lado da antiga casa de pastores que João Maria mandara reconstruir, para se fazer um melhor aproveitamento do espaço disponível, na impossibilidade legal de se construir de raiz na área protegida, e avançou na direcção da familiar voz cava do amigo, uma voz que subia duas oitavas quando se vinha.

- Aqui onde? - perguntou depois de contornar a casa e deparando-se apenas com a massa folhosa das copas globulares das laranjeiras. 

- No tanque, depois do pomar.

Júlio desceu um pequeno socalco e começou a avançar pelo caminho empedrado  que, ao longo de todo o comprimento, era ladeado por uma latada de grossas e robustas parreiras de uva moscatel já inchadas mas ainda ácidas.

João Maria não estava sozinho. Um rapaz estava na beira do tanque preparando-se para dar um mergulho e Júlio pensou que afinal tinha sido enganado: João Maria não iria dar o nó. Só quando a sua chegada fez aquela figura que dir-se-ia ter servido de modelo a Giacometti adiou o mergulho e olhou por cima do ombro, é que Júlio percebeu que a visão dquelas nádegas descarnadas levara-o a pensar tratar-se de um rapaz.

- Ah Júlio, que bela surpresa - disse João Maria que, apoiando os braços na borda do tanque, convidou-o a dar umas braçadas. Tinha uma barba de cinco dias, o que era uma novidade no rosto de João Maria, e deu por si a achar que a moldura de pêlos sal e pimenta lhe assentava muito bem, fazendo-o mais bonito do que julgara. Aliás, não devia nada à beleza, mas a natureza, como que a compensá-lo, ofertara-lhe uma pila que dispensava quaisquer outros pólos de atractividade. Mas talvez fosse só a ideia de que estava prestes a perdê-lo que o tornava belo.

- Não tenho calções.

- Ah isso. Oh estamos em zona não têxtil - disse João Maria e, num repente, saltou da água e, numa pose lasciva. deitou-se de lado na beira do tanque.

- E depois eu já ouvi falar tanto de si, que acho que temos intimidade suficiente para dispensarmos a roupa - disse a Maria João que entretanto mergulhara e nadara até  um colchão insuflável, onde se deitou.

Júlio começou a despir-se em silêncio. O desejo de confronto desaparecera. Ela sabia e ele não estava preparado para aquela situação. O João Maria continuava deitado, olhando-o descaradamente e divertido pelo efeito causado. Júlio lançou-lhe uma súplica com os olhos e ele mergulhou. Deixou as roupas em cima de um cepo que por ali estava para servir de assento e correu para o tanque, esperando que a Maria João não reparasse na erecção.

Foi só então que as apresentações foram feitas.

- Cabeça a minha. Júlio, esta é a Maria João.

- Muito gosto - cumprimentou Júlio, sorrindo. Não sabia se deveria rir ou analisar o espelhamento dos nomes que juntamente com o facto de ela parecer-se mais com um rapaz do que com  uma mulher fariam Freud bater palminhas de contentamento. - Com que então vão casar?

- As noticias correm depressa. E eu a pensar que o meu exílio nas faldas da serra bastaria para me manter ao largo da curiosidade mundana.

Maria João cruzou o tanque com meia dúzia de braçadas e, já fora de água, depois de enrolar uma das duas toalhas penduradas nos arames que orientavam a latada, perguntou quem queria um chá gelado. 

- Ninguém? - insistiu enquanto escolhia uma haste de menta, afastando as abelhas com a mão.

- Pode ser, querida - Respondeu por fim João Maria, que ocupara o lugar deixado vago pela namorada, deitando-se de bruços sobre o colchão.

Júlio continuava a nadar, rezando para que o esforço ou a frialdade da água surtissem efeito. Já cansado e, vendo que a erecção não se desmoronava, sentou-se na beira do tanque e cruzou as pernas, inclinando a cabeça para trás até o sol começar a fazer formigueiro no rosto. Continuava sem saber o que dizer e o silêncio estava a tornar-se embaraçoso. 

- Nunca pensei que fosses do tipo casadoiro... - Lançou por fim, mas sem olhar para João Maria.

- Nem tu nem eu. Foi um conjunto de casualidades... e eu já não vou para novo.

- Mas podias ter-me dito. 

- Mea culpa. Já pensei nisso, mas ainda não tenho a resposta para a minha omissão.

- Mas casar com ela? Casar com uma mulher? Agora?

- Não casaste com uma? Ela diz que me ama e eu decidi que também a amo. Afinal de contas o desejo de uma companhia na minha velhice é uma razão tão válida quanto outra mais nobre e menos egoísta para duas pessoas se casarem. E depois, como também sabes, os gays são demasiado estetas para se compadecerem com um velho

- Também eu disse que te amava, embora os tempos eram outros e o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda estava longe de ser legislado. E qual foi a tua reacção? Sumiste durante meio ano, com a desculpa esfarrapada de um negócio no Brasil.

- Éramos uns miúdos. Eu, pelo menos, era. Não sabia se andava contigo por amor ou por me agradar a ideia de ter um parceiro sexual sempre disponível. Tive que me distanciar. Quando voltei já andavas envolvido com a Patricia. 

- E porque nunca me disseste nada? - perguntou Júlio, sem conseguir esconder a surpresa da revelação. Nunca até então pensara que João Maria pôde equacionar a hipótese de só andar com ele por causa do sexo fácil. Ele amara-o, ama-o. E por saber que é o homem que alguma vez amaria é que se envolveu com a Patricia que, apesar de ter andado a fugir dela durante toda a puberdade, lhe era extremamente dedicada. - Podias ter-me dito quando, já depois de casado e com o Rodrigo a caminho, te procurei, não só para te convidar para padrinho do meu filho, mas com a esperança de voltar à tua cama, como veio a acontecer.

- Não quis pôr a tua vida de pantanas. Não quando tinhas uma mulher grávida. E então satisfazia-me o facto de sermos amantes das horas livres. Mas isso mudou: não quero ser um velho aos caídos.

- E a João sabe?

- Sabe. Não tem ciúmes do meu passado. Contei-lhe na mesma noite em que dormimos pela primeira vez e foi o facto de ela não se importar com a bagagem do meu passado que me decidi a pedir-lhe em casamento. 

Júlio queria perguntar-lhe o que iria acontecer de seguida. Qual seria o seu papel na vida de João Maria depois do casamento. Mas o receio da resposta fê-lo silenciar as interrogações que se alojaram nos dois vincos surgidos na testa.

- Então, vê lá se não demoras a fazer uma Joãozinho. Quando tiver idade para se casar será um óptimo partido para o teu afilhado, redimindo assim a inépcia sentimental dos pais. 

O comentário desanuviou o ambiente. Ambos riam-se às gargalhadas quando a João chegou com uma bandeja. Durante o tempo que demorara na cozinha, ocupara a cabeça com os possíveis cenários para a conversa daqueles dois. Mas vendo-os hílares, descontraiu os maxilares e sorriu.

- Aos noivos! - Brindou Júlio.

Naquela noite, depois de ter feito amor com uma aplicação altruísta que surpreendeu Patrícia, Júlio não conseguia adormecer; à medida que o tempo ia gotejando, passou em revista aquela tarde e todos os anos em que foi amante de João Maria. Sentia-se envergonhado e culpado. Nunca esteve apaixonado por João Maria, sabia-o agora. E só se zangou com ele ao saber do matrimónio aprazado, por saber que o seu casamento obrigaria-o a procurar outro homem que não exigisse mais que as ejaculações que lhe poderia facultar durante o período do almoço, aos finais de tarde ou nas vezes em que Patricia se ausentava da cidade. Júlio sabia agora que fora a cobardia e não o amor  que, quando João Maria fugiu dele para o Brasil, impediu-o de tentar conhecer outro homem e o lançara nos braços daquela rapariga tão masoquista que, apesar de todas as humilhações, o aceitou para marido.