segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Segredo revelado

Apanharam o Freire, finalmente. Escondido sob os chorosos ramos dos salgueiros que marginam a vala da maré, canal aberto para trazer os barcos do Tejo até à herdade, masturbava-se enquanto espiava os rapazes que, depois de se verem livres da roupa, mergulhavam do pontão e depois trepavam a margem, curvados, risonhos, apoiando-se nas mãos, como grandes símios, para se atirarem de novo à água. Quatro da vintena de nadadores, que se haviam afastado para partilharem o cigarro que um deles havia conseguido surripiar ao pai enquanto este se distraíra na noite anterior, encontraram-no com as calças enrodilhadas nos tornozelos impossibilitando uma fuga atempada, espancaram-no e, o que me foi contado com a condição de guardar segredo, violaram-no; os quatro, à vez. Na manhã seguinte, na posse da informação, decidi ir vê-lo. Tinha a esperança de que, uma vez que já não podia desmentir os boatos, quisesse ouvir as dúvidas acerca da minha sexualidade e, ao contrário do que aconteceu na primeira vez que tentei fazê-lo, não atiçasse o cão na minha direcção. Espreitei por cima do muro que divide a quinta dos meus pais da dos Freire, encontrei-o no pomar. Esladroava uma laranjeira, com metade do corpo oculto pela redoma das ramagens cerradas. As pernas do Freire, metidas nuns calções, carnudas, cobertas de uma penugem com reflexos de ouro sempre que a luz filtrada pela copa incidia nela, davam-me a impressão de ser um homem possante, custando-me a acreditar que tivesse sido manietado, ainda que para tal fosse indispensável de quatro rapazes igualmente vigorosos.

Para além dele, estava no pomar, sentado num cepo de azinho, debaixo da sombra de uma nogueira carregada de nozes com as cascas já fendidas, o pai, antigo feitor da herdade. Era homem odiado. A geração dos meus pais e até à anterior, que tiveram a herdade como primeira empregadora, ainda se lembram dos seus modos de tiranete que, depois da revolução, vendo-se ele próprio sem trabalho, exerceu sobre a família. Com a morte da mulher, que abraçou a locomotiva do comboio da manhã para o Algarve, começou a descurar a higiene, andando num estado ébrio permanente.

Com os pés descalços a saírem de umas já bastante enodoadas calças de pijama, comia pão com toucinho cozido que esmagava com a lâmina de uma faca, a gordura pingava sobre o ventre bojudo, onde dava de vez em quando palmadas de contentamento, só lhe faltando desatar às gargalhadas.

- Quantos é que foram ontem? perguntou, enquanto examinava, de olhos semi-cerrados, um garrafão empalhado ao lado. 

O filho não respondeu.

- Quatro? Quatro, hein! - prosseguiu ele, zombeteiro, desafiante. - Mas aposto que não te terias importado se tivessem sido mais. Quando fiz a tropa, havia uma amélia que uma noite fez onze. Onze! E ainda não satisfeito, foi preciso que dois se pusessem nele ao mesmo tempo.

- Cale-se - disse por fim o filho, com rispidez. - Vá, mas é, buscar o podão. 

O velho levantou-se e, como que para esgotar a paciência do filho, trouxe-lhe um serrote em vez da podoa. 

- Vou-me embora desta casa - começou a dizer, mas interrompeu-se e arrastou os pés até à nogueira, onde levou o garrafão à boca. - Só me envergonhas. Há vagas no lar da Misericórdia, lá em P., e aí ninguém me conhece. Ninguém te conhece...

- Vá e não volte. Já estou com saudades - disse o filho sem deixar transparecer a ironia da última frase. Ninguém o conhece, como bem diz, ninguém sabe como foi matando a mãe, ninguém sabe o que me fez...

- Cala-te. Sabes lá do que estás a falar. Tu já te esqueceste? Já? - Interrompeu o pai, num crescendo de cólera. - Tu já então gostavas disto - disse, enquanto fechava a a mão em concha sobre a braguilha.

- Há sempre quem culpe os outros pelos seus actos mais vergonhosos- disse o filho, saindo da redoma da copa da laranjeira. Um olho pisado e a pálpebra e os lábios rasgados provaram-me de que foi verdade o que me contaram. Olhou por cima do ombro e reparou em mim, desatando a correr na minha direcção ao mesmo tempo que brandia a podoa no ar.

- Anda cá, meu cabrão, anda cá, onde está agora essa coragem, onde é que está ela, agora que não tens os outros cabrões ao lado?


segunda-feira, 5 de setembro de 2011

uma história naturalista

O que vou contar aconteceu há dias, quando esperava o regresso do meu pai do mercado municipal, onde tem uma banca de venda de hortofrutícolas.

Entretido a preparar a cunha em bisel no garfo de cerejeira para depois acoplar no cavalo de gingeira, não vi Artur entrar no quintal. Só reparei que não estava sozinho ao preparar-me para abrir a fenda na estaca envasada.

Artur, com o habitual boné sobre a calva, estava em cima da bicicleta, com um pé no chão e o outro no pedal. A mão direita coçava a perna, junto á virilha, arrepanhando o tecido dos calções. "Estás muito trabalhador, nem parece teu, Manel!"

Apeou-se e encostou a bicicleta na esquina da mesa onde me encontrava a fazer o trabalho de enxertia, à sombra do velho damasqueiro.

Tirei o canivete da fenda e, empunhando-o,virei-me para Artur.

- O teu pai está?

O cão, um perdigueiro de nariz rachado, veio do fundo da quinta e farejou os sapatos de Artur, para, depois de dar duas voltas, deitar-se ao sol.

- Não, mas não deve tardar. É alguma coisa que possa resolver.

- Talvez... A minha mãe precisa de batatas.

- E queres das quais.

- Pois, isso é que já não sei. Ela não me disse. Podes mostrar...?

- Temos que ir até ao armazém.

Contornámos o poço e o tanque de rega. O armazém fica ao fundo da quinta, afastado das casas.

- Estas são as de pele branca e estas as de pele encarnada. Uma é boa para cozer e a outra é melhor para fritar.

- Pois não sei. Também não sou capaz de levar uma saca na bicicleta . - Disse, sentando-se em cima das sacas empilhadas, esfregando ostensivamente a perna,

- O meu pai não deve tardar. Volta cá depois do almoço. Escolhes e ele leva lá a casa, na camioneta.

- É capaz de ser melhor - Continuou, esfregando ainda a perna, onde se notava uma óbvia erecção.

- Eu olhava para ele, sem saber onde por os olhos.

- Sim, também acho que é melhor.

- Tu ainda trabalhas na biblioetca? - Perguntou então, mudando o rumo da conversa, como se as batatas tivessem sido apenas um pretexto.

Estranhei aquela pergunta. Era de conhecimento público que o meu contrato acabara há mais de um ano, não tendo sido renovado.

- Não...

- Trabalham lá umas gajas muito boas.

Encolhi os ombros e sorri, como se dissesse que tal era óbvio.

A directora da biblioteca é lésbica e seria de estranhar que recrutasse funcionárias feias.

- Não achas?

- É óbvio, com aquela directora, outra coisa não seria de esperar.

- Ou tu gostas mais de gajos?

Devo ter arregalado os olhos e corado. Não, sei que corei. As orelhas ferviam.

- Mas que raio de pergunta é essa?

- É o que dizem...

- Ah, é? E quem é que o diz?

- Opá, eu não acho mal nenhum...

- Um gajo é paneleiro só porque continua solteiro depois dos 35, ou por  não andar por aí a dizer que comeu esta e aquela?

- Se há fufas, também é natural haver gajos que gostem de gajos.

- Que caralho!

Não percebia onde queria ele chegar com aquela conversa.

- Por acaso tu és casado? - Continuei, não acreditando que estava a usar aquele argumento.

- Eu tanto gosto de cona como de cu.

- Que porra, hein! E que tenho eu a ver com isso?

Transtornado pela confissão de Artur, tentava perceber a sua intenção. Pensei que queria levar-me a confessar a minha preferência sexual, não sabendo com que fim.

Artur não se aguentava muito tempo no mesmo emprego, andava constantemente bêbado e, quando tal acontecia, rara era a vez que não se metia em zaragatas. A mãe ameaçava-o pô-lo fora de casa. Talvez precisasse de dinheiro e quisesse ouvir-me dizer que eu era homossexual para depois me chantagear.

Nervoso, ri-me e virei-lhe costas, pondo-me a caminho do quintal.

- Manel, anda cá, pá. Não podes ir assim. Estamos aqui sozinhos. Deixa lá, só a cabecinha.

É raro aquele que suporta a concretização dos sonhos, e eu já havia sonhado com Artur. Filho de um primo da minha mãe e de uma angolana que conhecera durante a Guerra do Ultramar e que depois trouxera consigo, Artur transformou-se num homem atraente, com musculos longos envolvidos por uma pele morena, como se andasse bronzeado todo o ano. Tinha ainda olhos verdes e o cabelo, apesar de já ir rareando, louro.

- Eu, hein.

- Bem, é melhor voltar cá quando o teu pai estiver chegado.

- Sim, é melhor - Disse, empunhando o canivete, para me preparar com prosseguir a enxertia.
- Ainda levo uma facada - Disse por fim, tentando fazer uma piada.

Artur foi-se embora. As pernas doíam-me. Passeei pelo quintal, suspirei. Apoei as palmas das mãos e, fechando os olhos, respirei fundo. Tentei abstrair-me da erecção que mantive durante aquela conversa que me pareceu saída de um filme.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Eu, Marco e o negro

O belo e másculo Marco, ou talvez seja melhor dizer o belo porque másculo Marco, tem estado a sorrir e a piscar os olhos na minha direcção ao mesmo tempo que conversa com os amigos, velhos frequentadores deste bar do Príncipe Real, que estão na ponta oposta do balcão. Sei que se chama Marco e é italiano porque já falei com ele na internet, embora não tenha sido capaz de chamar-lhe a atenção para mais do que uma dúzia de frases. Veste calças de ganga e t-shirt, tudo preto, que lhe sublinham as coxas poderosas e o planalto do peito; escanhoou a cabeça há pouco, talvez esta noite, e sou incapaz de parar de olhar para a veia pulsante que lhe sobe rente a uma das orelhas, apetecendo-me lambê-la. Um novo grupo de homens irrompe pela porta e o bar encolhe; fico mais perto de Marco. Um negro que veio com aquele último grupo olha para mim enquanto não vê Marco. Depois, cumprimentam-se com alguma intimidade, trocam algumas palavras e uns acenos de cabeça. Por fim, Marco vem ter comigo.

"Gostas dele? ele acha-te muito giro."

"O negro?"

"Sim."

"Bem..."

"Nem por isso, Tu és bem mais interessante."

Regressa ao seu grupo de amigos. Um deles é uma matrafona. veste uma blusa de seda com grandes flores estampadas e uma calças amarelas que acabam nos tornozelos, peças de roupa evidentemente femininas; uma quantidade enorme de pulseiros chocalham-lhe nos pulsos peludos, numa mão tem um cigarro fininisso e comprido e na outra um cálice de Bayleys. Marco bebe cerveja pela garrafa. Olho para Marco.

O negro vai ter com ele. É muito magro e tem umas feições muito delicadas. Falam enquanto olham na minha direcção. O negro aproxima-se.

"Achas que sou atrente?"

"Bem..."

"Não gostas de pretos?"

Hesito. "Não é verdade que não goste", digo-lhe. "Há até bastantes que são bem giros."

"Então, e eu, achas que faço parte desses que são bem giros."

"Sim, mas não esta noite"

"Não esta noite é o mesmo que dizer não.

Faço um esforço para não ofendê-lo. "Não, não é a mesma coisa. Talvez amanhã."

"Amanhã é nunca."

"Sorte a minha!", exclamei para mim. "Queria apenas dizer que hoje estou cansado."

"Está bem. Amigos como dantes."

Suspiro e, depois de um silêncio, ele diz-me, olhando para Marco que de vez emquando olha na nossa direcção, "Gostas do italiano?"

"Sim."

"Chama-se Marco. É florista na loja do namorado, que é uma velha com montes de papel."

"Ele disse-me chamar-se Marco,  mas não mencionou qualquer namorado." Sorrio.

"Não gostas de pretos, pois não?", pergunta, acusadoramente.

"Oh, sim, gosto, gosto. Já te disse até que acho alguns bastante atraentes."

"Alguns mas nenhum em particular."

"Sorte a minha!"

Volta finalmente para o seu grupo de amigos, mas continua sem despegar os olhos de mim. marco continua na conversa com os amigos, ainda sorri, mas os seus olhos já não se encontram com os meus. Aproveito um momento em que ele parece afastar-se dos amigos para ir ter com ele.

"O que é que disseste ao negro?"

"Eu? Na-da! Ele é que quer conhecer-te."

"Acho que ficou zangado comigo"

"Esquece isso. Amanhã já não se lembrará de nada."

Entretanto começa a dançar ao som de Shakira e eu aproveito para ir à casa de banho, para onde Marco nem o negro me seguiram. No meu regresso choco com Marco, que continua afazer a sua imitação de Shakira. Com os olhos fechados, nem se dá conta do meu pedido de desculpa. Ao voltar ao meu antigo lugar junto ao balcão, reparo que o negro já se foi embora e lamento-o. Não há quem não goste de ser admirado. Levanto-me e preparo-me para sair. Quero perguntar a Marco se quer boleia para Almada. O meu carro está estacionado no Príncipe Real, mas a sua imitação da irritante Shakira deixa-o incomunicável.

À porta, despeço-me de Edy, um dos dois donos do bar. "Já vais, querido?" Sorrio-lhe e encolho os ombros. Começo a subir a rua, esperando encontrar o negro á minha espera no jardim. Quão triste um homem consegue ser?!" Conduzo de volta aos subúrbios. Sozinho.






quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Regresso a casa

Quando a minha mãe foi acompanhar o meu pai ao jazigo da família, tive que regularizar as partilhas da Herdade. Era ainda adolescente quando lá estivera pela última vez e pouco me lembrava da casa debruçada sobre o barranco e das brincadeiras com o Pedro, o filho dos caseiros. Era exímio a trepar aos chaparros, descendo depois cuidadosamente com uma cria de melro ou de gaio no côncavo das mãos. Sabia como atravessar uma manada sem que uma vaca investisse contra ele. Nunca, mas nunca te ponhas entre um vitelo e a mãe. Os tractores ou quaisquer alfaias agrícolas não tinham segredos para ele. E era também mágico, sabendo o que fazer para que um marmeleiro passasse a dar pêras ou nêsperas em vez de marmelos. Distinguia de olhos fechados os cogumelos e conhecia até o interior da terra, revelando rapidamente onde as túbaras se ocultavam. Era o único jovem em quilómetros e nunca percebi por que não se ia embora.

Naquela sexta-feira à tarde, ao sair do alcatrão e tomar o aceiro na direcção da Herdade, não estava à espera de encontrá-lo. Apesar de ser mais velho do que eu, ainda que apenas dois ou três anos, cumprimentou-me com uma reverência antiquada - a mesma que levara os seus pais e tratarem-me por menino depois de eu ter começado a fazer a barba - e insistiu para me levar as malas. Depois de entrarmos em casa, perguntei-lhe se ainda tinha a velha e roncante V5. Assentiu, e pedi-lhe que me levasse à barragem.

Os dentes evidenciaram-se no rosto tisnado por dias e dias passados ao ar livre. Quando a solidão, a tristeza ou alguma dor imprecisa tomavam conta dele, sentava-se ali, diante das águas. Pelo caminho, aproveitei as subidas íngremes para me segurar à sua cintura e encostar o rosto ao ombro de Pedro, que sorria para o espelho da motorizada. Na superfície da água, entre o ocaso, misturavam-se as nuvens e a sombra dos sobreiros. Acho que vou comprar a parte da minha irmã. Não sirvo para professor. Não suporto a falta de interesse dos jovens pela instrução. Mas não sei o que fazer com isto. E pensei, sem dizer: Nem sei o que hei-de fazer contigo.

Não há nada que não se aprenda, disse ele. E, depois, se te ensinei a nadar nestas águas, também posso ensinar-te a tratar da Herdade. Esta é a tua casa. Depois de pegar num graveto, acrescentou: E também a minha.

Um súbito golpe de vento açoitou a superfície da barragem, dois patos bravos voaram, com as penas brilhando sob a última réstea  de sol. Aproximei o rosto do de Pedro e arrependi-me imediatamente. Ele afastou o rosto. Desculpa, foi uma tontice. Negou com a cabeça. Não, não estás enganado. E então foi ele quem me beijou.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Manuel

Manuel encontrava-se no meio da pista de dança, na discoteca tinha lugar uma festa temática. As paredes estavam decoradas com posters de barbudos com peitos e barrigas peludos. Alguns homens em redor de Manuel, que, na maioria, reproduziam as características físicas dos modelos das fotografias, dançavam no seu lugar; outros tentavam passar através deles e assim chegar às escadas de acesso ao piso superior, onde se podia fumar e conversar. Manuel divertia-se, o álcool desinibira-o e, quando o calor se tornou insuportável, teve a coragem de despir a camisa, pendurando-a num dos bolsos de trás das calças, o que era coisa que se estivesse sóbrio nunca se atreveria a fazer. Tinha perdido a conta às dietas que já fizera e às inscrições em ginásios, sem que conseguisse emagrecer. Não se distinguindo da maioria pela primeira vez, divertia-se sem reservas. O acaso levara-o ali oferecendo-lhe a alegre surpresa de que, ao contrário da ideia feita, um homossexual gordo, careca, com excesso de pilosidade corporal e já não muito jovem também pode ser considerado atraente. Manuel tinha a atenção de um homem que  conhecia de vista desde as primeiras incursões pelo Bairro Alto e Príncipe Real, há alguns anos. Estava mesmo ao seu lado, também em tronco nu. De vez em quando, empurrado pela multidão sempre que alguém tentava chegar às escadas no fundo da pista, sentia o seu corpo a escaldar. Quando assim acontecia, recebia um sorriso. Não sabia o que fazer, e o seu estômago contraía-se, nunca antes pensara que era um homem que pudesse chamar a atenção daquele estranho: esteve sempre longe de pensar que um homem todo feito de músculos, ainda jovem e com um rosto agradável, pudesse sentir qualquer atracção por um badocha como ele, tanto mais que vira-o sempre acompanhado por homens igualmente musculosos. Alguém tentou atravessar a pista, voltaram a tocar-se, voltaram a sorrir – o desconhecido descaradamente e Manuel de uma forma mais contida -, e começaram a dançar um com o outro, os rostos cada vez mais próximos. Com inesperada confiança, Manuel entreabriu os lábios. Beijaram-se com violência, como se o desejassem fazer desde que se viram pela primeira vez. Sentiu os dedos do desconhecido torcerem-lhe os mamilos e aguentou a pressão até ela se tornar em dor. “És ruim!” disse, depois de interromper o beijo. O outro olhou-o com surpresa. “Como sabes o meu nome?” O ruim chegou-lhe aos ouvidos sem o éme. Manuel voltou a sorrir e, sem vontade de desfazer o equívoco, encolheu os ombros e disse: “Mistério... Eu tenho poderes!” Já no final da noite, uma das raras raparigas que se encontravam na discoteca, uma com um lenço na cabeça, aproximou-se e interrompeu-lhes as caricias ostensivas, dizendo qualquer coisa que a música impediu de ouvirem. Ela abraçou-os e voltou a falar. Os três tinham os rostos colados, e Manuel e o seu recentissimo companheiro finalmente perceberam: “Que inveja que tenho de vocês. Fazem um casal muito giro.” Ela confundira-os com um casal de namorados. Olharam um para o outro e depois para ela, sorrindo. A rapariga contou então que tinha acabado há pouco uma relação e que, para pintar o quadro com cores ainda mais escuras, estava a fazer quimioterapia. Um rapaz aproximou-se do estranho trio e ela apresentou-o. Era o irmão, que olhava para ela com cara de quem dizia “Já não bebes mais nada.” Os irmãos afastaram-se, mas ela voltou atrás e beijou-os, não no rosto, mas na boca. “Com cada maluca...”, disse Manuel para Rui, quando ela saiu da pista.

A música chegou ao fim, a pista esvaziou-se. Manuel reflectiu sobre os possíveis desfechos daquele engate e concluiu que aquilo teria de se interromper por ali, sabia de antemão que o sexo seria mau pois não tinha intimidade suficiente para se entregar ao outro sem qualquer reticência e, depois, mau sexo significa sempre um ponto final parágrafo para qualquer engate. Mas, quando o outro lhe perguntou se queria ir para casa dele, não soube como resistir-lhe: a novidade de que afinal até poderia ser atraente merecia ser comemorada.


Algumas semanas mais tardes, Manuel voltou à discoteca. Esperava por um gin tónico quando uns braços apoiaram-se no balcão, a seu lado, intromissivamente. Olhou para o lado para ver quem se colara a ele e reconheceu a rapariga que o beijou na boca na noite em que conhecera Rui. "Olá!" disse ela, efusivamente. "O teu namorado?" Manuel sorriu e encolheu os ombros. Então ela, acenando reprovadoramente a cabeça, disse: "Os gays são todos iguais..." Perante o franzir da testa de Manuel, que não percebia onde ela queria chegar, continuou: "Têm todos um pavor danado da constância de um sentimento... tanto é o pavor que não hesitam em deitar fora, e para bem longe, algo de bonito que lhes acontece."

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O casamento de João Maria

Enquanto Maria João se afastava da piscina improvisada, através do empedrado do caminho do laranjal, na direcção da cozinha, com o intuito de fazer um chá gelado para melhor suportar aquele dia de calor africano, levando, na mesma mão com que prendia a toalha junto ao peito liso, uma das poucas hastes não floridas da menta que, para gáudio das abelhas ufanas, crescia, viçosa e olorosa, junto às paredes do tanque grande, onde a água da mina era armazenada e em cuja beira se sentava Júlio que, após ela ter desaparecido através das portas de correr, descruzou as pernas, com que até então ocultara dolorosamente uma curta mas robusta erecção, e, na expectativa de debelar não tanto a excitação inoportuna mas a raiva que impelira-o a aparecer na Quinta da Mina sem se fazer anunciar, deslizou para água e, sentido-a apertar-lhe os testículos, mergulhou sem hesitações, emergindo a escassos centímetros de João Maria que, apesar de estar a ser vergastado pelo sol há largos minutos, continuava deitado de bruços sobre um colchão insuflável.

- Ainda furas o colchão! - disse, pressentindo por que João Maria se recusava a mudar de posição ia para um quarto de hora.

- Parvalhão! respondeu-lhe João Maria, escorregando para a água.

Mas a forma como o disse fez-lhe crer que a entrada em cena daquela mulher escanzelada e tão jovem quanto falha de atractivos não punha em causa uma amizade tão longa como a deles, o que foi confirmado pelo que aconteceu depois de João Maria vir à tona: apoiou o peso do seu corpo nos ombros de Júlio, obrigando-o a mergulhar e aí  permanecer até os pulmões começarem a arder, numa brincadeira mais apropriada a adolescentes do que a dois homens a chegarem aos cinquenta. No entanto, subsistia a incerteza sobre a garantia de que continuaria a usufruir do corpo do amigo depois do casamento.

No caminho para a Quinta da Mina, apenas um dia depois de um amigo comum lhe ter dito que João Maria estaria prestes a casar e de a surpresa de tal noticia tê-lo feito apenas perguntar: "Casar? e com uma mulher?", acumulara a vontade de humilhá-lo, o que só seria possível se a noiva continuasse na ignorância do facto de que eles eram amantes desde a adolescência. Estava zangado por não lhe ter dito nada quando estiveram juntos numa pensão do Bairro Alto nem há uma semana; pensava que estava a ser descartado como um ocasional parceiro de sexo. Chegara ao portão da quinta que estava sempre aberto por a estrada, que a cortava ao meio, fazer parte de um percurso pedonal instituído pelo Parque Natural e ser usada tanto por caminhantes, cicloturistas como vigilantes florestais e bombeiros, estacionou ao lado de uma pick up na pouca sombra de um par de carrasqueiros e apitou três vezes, imprimindo na buzina toda a sua fúria. 

- Estamos aqui - Ouviu do outro lado da antiga casa de pastores que João Maria mandara reconstruir, para se fazer um melhor aproveitamento do espaço disponível, na impossibilidade legal de se construir de raiz na área protegida, e avançou na direcção da familiar voz cava do amigo, uma voz que subia duas oitavas quando se vinha.

- Aqui onde? - perguntou depois de contornar a casa e deparando-se apenas com a massa folhosa das copas globulares das laranjeiras. 

- No tanque, depois do pomar.

Júlio desceu um pequeno socalco e começou a avançar pelo caminho empedrado  que, ao longo de todo o comprimento, era ladeado por uma latada de grossas e robustas parreiras de uva moscatel já inchadas mas ainda ácidas.

João Maria não estava sozinho. Um rapaz estava na beira do tanque preparando-se para dar um mergulho e Júlio pensou que afinal tinha sido enganado: João Maria não iria dar o nó. Só quando a sua chegada fez aquela figura que dir-se-ia ter servido de modelo a Giacometti adiou o mergulho e olhou por cima do ombro, é que Júlio percebeu que a visão dquelas nádegas descarnadas levara-o a pensar tratar-se de um rapaz.

- Ah Júlio, que bela surpresa - disse João Maria que, apoiando os braços na borda do tanque, convidou-o a dar umas braçadas. Tinha uma barba de cinco dias, o que era uma novidade no rosto de João Maria, e deu por si a achar que a moldura de pêlos sal e pimenta lhe assentava muito bem, fazendo-o mais bonito do que julgara. Aliás, não devia nada à beleza, mas a natureza, como que a compensá-lo, ofertara-lhe uma pila que dispensava quaisquer outros pólos de atractividade. Mas talvez fosse só a ideia de que estava prestes a perdê-lo que o tornava belo.

- Não tenho calções.

- Ah isso. Oh estamos em zona não têxtil - disse João Maria e, num repente, saltou da água e, numa pose lasciva. deitou-se de lado na beira do tanque.

- E depois eu já ouvi falar tanto de si, que acho que temos intimidade suficiente para dispensarmos a roupa - disse a Maria João que entretanto mergulhara e nadara até  um colchão insuflável, onde se deitou.

Júlio começou a despir-se em silêncio. O desejo de confronto desaparecera. Ela sabia e ele não estava preparado para aquela situação. O João Maria continuava deitado, olhando-o descaradamente e divertido pelo efeito causado. Júlio lançou-lhe uma súplica com os olhos e ele mergulhou. Deixou as roupas em cima de um cepo que por ali estava para servir de assento e correu para o tanque, esperando que a Maria João não reparasse na erecção.

Foi só então que as apresentações foram feitas.

- Cabeça a minha. Júlio, esta é a Maria João.

- Muito gosto - cumprimentou Júlio, sorrindo. Não sabia se deveria rir ou analisar o espelhamento dos nomes que juntamente com o facto de ela parecer-se mais com um rapaz do que com  uma mulher fariam Freud bater palminhas de contentamento. - Com que então vão casar?

- As noticias correm depressa. E eu a pensar que o meu exílio nas faldas da serra bastaria para me manter ao largo da curiosidade mundana.

Maria João cruzou o tanque com meia dúzia de braçadas e, já fora de água, depois de enrolar uma das duas toalhas penduradas nos arames que orientavam a latada, perguntou quem queria um chá gelado. 

- Ninguém? - insistiu enquanto escolhia uma haste de menta, afastando as abelhas com a mão.

- Pode ser, querida - Respondeu por fim João Maria, que ocupara o lugar deixado vago pela namorada, deitando-se de bruços sobre o colchão.

Júlio continuava a nadar, rezando para que o esforço ou a frialdade da água surtissem efeito. Já cansado e, vendo que a erecção não se desmoronava, sentou-se na beira do tanque e cruzou as pernas, inclinando a cabeça para trás até o sol começar a fazer formigueiro no rosto. Continuava sem saber o que dizer e o silêncio estava a tornar-se embaraçoso. 

- Nunca pensei que fosses do tipo casadoiro... - Lançou por fim, mas sem olhar para João Maria.

- Nem tu nem eu. Foi um conjunto de casualidades... e eu já não vou para novo.

- Mas podias ter-me dito. 

- Mea culpa. Já pensei nisso, mas ainda não tenho a resposta para a minha omissão.

- Mas casar com ela? Casar com uma mulher? Agora?

- Não casaste com uma? Ela diz que me ama e eu decidi que também a amo. Afinal de contas o desejo de uma companhia na minha velhice é uma razão tão válida quanto outra mais nobre e menos egoísta para duas pessoas se casarem. E depois, como também sabes, os gays são demasiado estetas para se compadecerem com um velho

- Também eu disse que te amava, embora os tempos eram outros e o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda estava longe de ser legislado. E qual foi a tua reacção? Sumiste durante meio ano, com a desculpa esfarrapada de um negócio no Brasil.

- Éramos uns miúdos. Eu, pelo menos, era. Não sabia se andava contigo por amor ou por me agradar a ideia de ter um parceiro sexual sempre disponível. Tive que me distanciar. Quando voltei já andavas envolvido com a Patricia. 

- E porque nunca me disseste nada? - perguntou Júlio, sem conseguir esconder a surpresa da revelação. Nunca até então pensara que João Maria pôde equacionar a hipótese de só andar com ele por causa do sexo fácil. Ele amara-o, ama-o. E por saber que é o homem que alguma vez amaria é que se envolveu com a Patricia que, apesar de ter andado a fugir dela durante toda a puberdade, lhe era extremamente dedicada. - Podias ter-me dito quando, já depois de casado e com o Rodrigo a caminho, te procurei, não só para te convidar para padrinho do meu filho, mas com a esperança de voltar à tua cama, como veio a acontecer.

- Não quis pôr a tua vida de pantanas. Não quando tinhas uma mulher grávida. E então satisfazia-me o facto de sermos amantes das horas livres. Mas isso mudou: não quero ser um velho aos caídos.

- E a João sabe?

- Sabe. Não tem ciúmes do meu passado. Contei-lhe na mesma noite em que dormimos pela primeira vez e foi o facto de ela não se importar com a bagagem do meu passado que me decidi a pedir-lhe em casamento. 

Júlio queria perguntar-lhe o que iria acontecer de seguida. Qual seria o seu papel na vida de João Maria depois do casamento. Mas o receio da resposta fê-lo silenciar as interrogações que se alojaram nos dois vincos surgidos na testa.

- Então, vê lá se não demoras a fazer uma Joãozinho. Quando tiver idade para se casar será um óptimo partido para o teu afilhado, redimindo assim a inépcia sentimental dos pais. 

O comentário desanuviou o ambiente. Ambos riam-se às gargalhadas quando a João chegou com uma bandeja. Durante o tempo que demorara na cozinha, ocupara a cabeça com os possíveis cenários para a conversa daqueles dois. Mas vendo-os hílares, descontraiu os maxilares e sorriu.

- Aos noivos! - Brindou Júlio.

Naquela noite, depois de ter feito amor com uma aplicação altruísta que surpreendeu Patrícia, Júlio não conseguia adormecer; à medida que o tempo ia gotejando, passou em revista aquela tarde e todos os anos em que foi amante de João Maria. Sentia-se envergonhado e culpado. Nunca esteve apaixonado por João Maria, sabia-o agora. E só se zangou com ele ao saber do matrimónio aprazado, por saber que o seu casamento obrigaria-o a procurar outro homem que não exigisse mais que as ejaculações que lhe poderia facultar durante o período do almoço, aos finais de tarde ou nas vezes em que Patricia se ausentava da cidade. Júlio sabia agora que fora a cobardia e não o amor  que, quando João Maria fugiu dele para o Brasil, impediu-o de tentar conhecer outro homem e o lançara nos braços daquela rapariga tão masoquista que, apesar de todas as humilhações, o aceitou para marido. 




domingo, 29 de maio de 2011

Um casal

Os Amado, António Libério e Maria da Piedade, um casal no final da casa dos trinta, alugam uma casa junto à praia onde os meus pais têm um restaurante. Durante duas semanas, uma no final de Julho e outra no início de Agosto, o antigo povoado de pescadores, entretanto transformado em estância de veraneio, vê-os como o exemplo da felicidade conjugal, que só não é tida como completa pela ausência de filhos. Trocam caricias sempre que os beijos e os abraços não podem ser entendidos como uma senha para o sexo e ninguém os viu amuados um com o outro uma única vez, quando há mais de uma década que aqui vêm fazer férias.

Certa tarde, quando eu aproveitava a pausa intercalar entre o almoço e o jantar para apanhar um pouco de sol, calhei estender a toalha não muito longe do seu guarda-sol.

Acho que vou dar uma corridinha... Tenho de abater esta pançazinha”, disse António enquanto apertava o pneu entre o polegar e o indicador. Acrescentara uns 11 quilos ao peso que tinha antes de se casar: um por cada ano de matrimónio.

Mas não vás muito longe. Temos mesa reservada”, alertou-o Piedade, sem tirar os olhos do livro aberto sobre os joelhos.  Tinha sempre o cuidado de não mostrar as suas leituras, como se tivesse pudor ou vergonha de que se soubesse que gostava dos romances de Danielle Steel. (No dia anterior, enquanto lhe servi o lanche, ela distraiu-se e eu vira a capa do livro.)

António avançou aos ziguezagues até à zona de rebentação e afastou-se do ajuntamento dos banhistas. O areal perde-se de vistas mas as pessoas insistem em se concentrar junto à torre de vigia do nadador-salvador, no final do passadiço que atravessa o areal desde as últimas casas do povoado até quase à beira de água.

Correu na direcção do nascente, onde o areal começa a elevar-se e forma um cordão dunar com as copas dos pinheiros espreitando sobre a sua crista. É uma zona de dificil acesso a partir da estrada que bordeja o pinhal em direcção ao sul e fica a mais de meia hora a pé do povoado, pelo que a praia mantem-se aí selvagem, sendo esse isolamento aproveitado por nudistas.

António parou quando aí chegou. O rosto denotava o esforço de um corpo desabituado ao exercício fisico que a distância implicou para ser percorrida a correr. Curvou-se e apoiou as palmas das  mãos nos joelhos e, depois de recuperar o fôlego, subiu a duna.

O pinhal era sulcado por vários carreiros que se cruzavam para se separarem mais adiante e depois bifurcarem-se novamente. Após ter permanecido de pé no cimo da duna por alguns minutos, António decidiu embrenhar-se por entre os pinheiros e os maciços de arbustos. Ao virar uma moita de camarinhas deu com um pinheiro que o vento tinha obrigado a crescer rente ao chão e cuja copa ocultaria quem entrasse na sua sombra. Despiu os calções e, amarfanhando-os até desaparecerem no punho fechado, ficou à espera.

Não era o único homem que andava por ali como se procurasse algo que entretanto tivesse  perdido. Dois homens aproximavam-se a passo acelerado, um a pouca distãncia do outro mas a suficiente para se perceber que não estavam juntos. O primeiro a chegar junto dele tinha os pêlos do peito completamente brancos e o rosto com as marcas evidentes de que tratava-se de alguém que ultrapassara a barreira dos sessenta, e António colou os olhos no chão durante todo o tempo que o velho demorou a afastar-se. O segundo era ainda jovem como evidenciava o olhar de miúdo e o corpo seco de adiposidades de quem têm ainda tem um metabolismo a mil á hora. António sorriu-lhe e, com a erecção colada à barriga, entrou no esconderijo formado pela copa rasteira. O rapaz, hesitante, seguiu-o.

O que se passou a seguir aconteceu sem terem proferido qualquer palavra. Beijaram-se sem pressa e entregaram-se sem reserva, pelo menos até António sentir os dentes do outro cerrarem-se sobre um dos ombros. Ergueu a mão direita e mostrou-lhe a aliança, como se lhe dissesse “por favor, nada de marcas”.

Vemo-nos por aí”, disse António no fim, apressando-se a regressar ao areal. Pousou os calções num tronco trazido até ali pelas ondas durante o inverno e entrou na água, que estava morna. Deu ums braçadas e lavou as escamas de sémen coladas aos pêlos púbicos. Olhou para o sol e, soltando uma praga, começou a correr.

Vamos?! A corrida abriu-me o apetite” disse ao chegar junto de Piedade que, sem uma palavra, guardou na bolsa e, enquanto o marido fechava o guarda-sol, começou a sacudir a toalha. Deram as mãos e ofereceram as costas ao sol que já começava a tocar na água, lá ao longe.

Ao jantar, sentados a uma das mesas encostadas às vidraças panorâmicas, fizeram aquilo que os casais supostamente fazem: falaram sobre a comida, comentaram sobre a excelências das condições atmosféricas em relação a anos anteriores e, de vez em quando, pousaram os talheres para esticarem as mãos por cima da mesa e, enganchando os dedos, sorrirem um para o outro. Fizeram tudo isto enquanto os outros comensais os olhavam sem conseguirem disfarçar a inveja e eu, num corropio entre a cozinha e a sala de refeições, dizia, entredentes: “mentirosos, mentirosos...” Numa das minhas vindas à sala das refeições, Piedade olhou para mim e disse qualquer coisa a António, que, como estava de costas, teve que olhar por cima do ombro e depois aquiesceu com a cabeça. Ao passar pela sua mesa, para servir o jantar a um casal de belgas cuja filha ruborizava sempre que me via, ouvi Piedade dizer: “... bom-gosto. O rapaz é bem giro.”

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Encurralados

Era Eduardo Braço-Forte, com quem tive um caso amoroso cujo resultado infrutífero foi de inteira responsabilidade da minha então quase total inexperiência nas intrincadas matérias do coração: o terror sudoroso e taquicárdico de que a assunção de uma relação me obrigasse a anunciar aos meus familiares a secreta condição de homossexual, porque a mãe não descansaria até saber as razões da saída de casa do filho único, fez com que tivesse chegado aos 28 quase virgem... Mas como ia a dizer, Eduardo Braço-Forte era um homem que, como é vulgar encontrar entre os amantes da vida nocturna, tinha uma idade indefinida e, apesar de estar já a resvalar para os 50, todos diziam que teria entre 27 e trinta e muitos. Os olhos de gato, grandes e rasgados, que se semi-cerravam debaixo do sol, davam a ideia de que olhava para o mundo com desconfiança, os malares aguçados tornavam mais seco o rosto cheio de ângulos rectos e que terminava num maxilar bem delineado. Castigava o corpo com uma disciplina castrense através de pesos, máquinas e um eterno regime alimentar pobre em hidratos de carbono, tendo-o assim transformado numa fortaleza de músculos que na verdade era uma prisão para tudo o que considerava fraqueza. A sua aparência fazia-o um sério candidato para ser escolhido para desempenhar o papel de herói de um filme de acção; mas Eduardo não era actor. Também era verdade que aquela imagem de um homem que destila testosterona em vez de suor fazia com que ninguém o imaginasse portador de quaisquer inseguranças ou que seria capaz de nutrir sentimentos profundos por outras pessoas que não ele.

Eram onze e meia de uma noite chuvosa de dezembro. Eu andava pelo quarto à procura de uma meia que a ardência do reencontro com Eduardo, depois de uma semana sem nos termos visto, fez desaparecer, tal foi a rapidez e anarquia quando duas horas antes nos despimos. Eduardo estava recostado na cabeceira da cama fitando em silêncio a minha busca frenética. Estava com ar de quem tentava controlar a saída de um comentário capaz de começar uma discussão e eu, consciente de que o temporal poderia entrar no quarto a qualquer momento, evitava coincidir os meus olhos com os dele.

- Manuel – disse Eduardo – não achas que o desaparecimento misterioso da meia é um sinal de que deves passar o resto da noite comigo?

- Sabes bem que não posso.

- Sei? - perguntou, amarfanhando o lençol com os dedos da mão direita e cerrando o queixal.

- E o que diria eu em casa?

- É esse o teu problema? - disse, deixando permanecer no rosto uma expressão de incredulidade

- Compreendo-te – respondi, fitando-o – Falar é fácil. Não sei se posso concordar contigo.

- Porra Manuel! – exclamou, levantando-se da cama – olha bem para ti – continuou, apontando para o espelho de corpo inteiro encostado à parede defronte dos pés da cama de casal – não tarda nada tens 30 anos e continuas com medo dos teus pais ou, o que é pior, com medo de ti.

Ficámos de pé durante alguns segundos, cada vez mais assustados com o rumo que a sucessão de frases poderia tomar.

- Não sei se já reparaste, mas nunca passaste a noite comigo. Chegas, fodes e vais embora – disse enquanto se encaminhava para a cómoda – é só isso que queres de mim? - perguntou, abrindo uma das gavetas – toma! - continuou, empunhando um par de meias na minha direcção.

- Sabes bem que não é isso – disse ao agarrar nas meias.

- Mas é o que parece – retroquiu – Calça-te lá então, levo-te a casa.

- Não é preciso. Não quero dar-te trabalho

- Não queres dar trabalho ou não queres que te vejam chegar na companhia de um estranho?

- Não ponhas palavras na minha boca – disse, enquanto calçava o último sapato – em meia hora estou em casa e, depois, não vale a pena saires de casa com este temporal.

Fitava-me novamente como se não acreditasse no que acabara de ouvir.

- Não sei se gosto da direcção que isto está a tomar – disse, começando a vestir-se.

- Isto o quê? - Perguntei.

- Isto! Sabes bem!

- Não sei se realmente saberei.

- Isto! disse, apontando para mim e para ele. -  Nós. - Sentou-se na beira da cama e depois continuou - talvez tenha chegado a altura de conversarmos seriamente.

- Amanhã... Amanhã conversaremos sobre tudo o que desejares e durante o tempo que precisares. Mas hoje não. Ainda perco o comboio.

- Amanhá. Sempre amanhã – disse ao encaminhar-se para a casa da banho, fechando a porta atrás de si.

- Sabes que te amo – disse-lhe, encostando-me à porta – mas preciso de tempo.

Eduardo saiu da casa-de-banho e, para meu espanto, abraçou-me e apertou os lábios contra a minha testa. Senti um grande alívio. Mas não durou muito.

- Acho que será melhor deixar de nos vermos

- Se é isso que desejas, - disse, pondo o ónus da decisão nele.

- Não o desejo, mas será o melhor. - Libertou-me do abraço e agarrou no porta-chaves pousado no aparador. - Anda!

- Não é preciso.

- Levo-te só até à estação. Bem sei que não me deixas levar-te a casa.


Fizemos a viagem em silêncio. No parque de estacionamento da estação de Sete Rios hesitei. Não sabia como despedir-me. Adivinhando o meu constrangimento, Eduardo apertou-me o joelho e desejou-me boa viagem e boa sorte. Saí. Continuava a chover e corri para a porta da estação. Olhei para trás por cima do ombro; ele ainda não tinha regressado a casa, mas os vidros embaciados impediam-me de vê-lo. Quando o comboio chegou, sentei-me numa carruagem vazia e encostei a face ao vidro da janela, fechando os olhos. - Eu gosto dele. - O comboio reiniciou a marcha. - Não, não gosto. Eu amo-o – continuei a a dizer para mim mesmo. - Abri os olhos – que fizeste tu? - perguntei ao meu rosto reflectido na janela.



Deixei passar dois dias e só depois lhe telefonei. Receava que reconhecesse o meu número no ecran do telemóvel e ignorasse a chamada. Mas não o fez. Talvez tivesse decidido passar uma esponja sobre a nossa discussão.

- Já tenho as meias lavadas, agora é so combinar um dia para entreguá-las.

- Deixa estar – respondeu secamente – não é preciso. – e desligou.

- Estúpido, Manuel. És tão estúpido.

domingo, 15 de maio de 2011

Misoginia ou outra coisa qualquer

Se há um momento exacto para isto ter começado, e se nos quisermos manter ao nível da psicologia veiculada pelas revistas femininas, então tenho de dizer que foi aos nove anos. Estava no quarto a tentar adormecer, o que não era tarefa fácil nem para a criança sempre a correr que eu era e de quem se esperava uma breve queda no sono: as molas do colchão de meus pais chiavavam, agressivamente; mas, ao contrário do esperado quando aquele ruído acabasse, não ouvi depois os habituais risinhos, sussurros nem muito menos os passos de pés descalços na direcção da casa de banho, o que sempre me dizia que o silêncio não tardaria a ser devolvido à casa: fui antes surpreendido pelos gritos de minha mãe. As tripas enovelaram-se-me e, assustado,  vi-me, sem saber como, no quarto diante do meu.  Ela ainda estava em cima do meu pai que, embora se lhe assemelhasse em tudo, já não era um homem e mais parecia um boneco de cera. Foi nesse momento que tudo começou. Pode escrever o que lhe digo. Foi a partir dessa visão que comecei a odiar a minha mãe. Afianço-lhe. Era uma criança, é certo, um ser ainda em formação, mas tive a plena consciência de que a odiava e de que não havia volta a dar. E enquanto o tempo foi passando, a minha faculdade de odiar foi amontoando até transbordar. Ela havia cometido aquele que por ventura é o único crime perfeito, mors in coitem. Não tivesse posto termo à própria vida (não, não a matei), talvez o meu ódio tivesse ficado circunscrito e não odiasse, hoje, todas as mulheres. Todas, sem excepção. Claro que não me tornei num inadaptado; aprendi a ser educado, simpático e até cortês com as mulheres, mas o mesmo não é dizer que o forte asco causado pela presença feminina em meu redor tivesse diminuído para patamares toleráveis ou desaparecido. É por isso que só me dou bem com outros homens. Tivesse eu o dom da omnipotência, instituiria uma federação mundial só de homens, uma falocracia; as mulheres seriam condenadas às câmaras de gás e aquele que tivesse o maior caralho seria o mais poderoso.

Não, não olhe para mim assim. Como é que consegui a faca que tenho na mão, e que uso pretendo dar-lhe? Ora, doutora, considero-a apenas nojenta e não estúpida. As nossas prisões são uns verdadeiros jardins de delícias, não só porque não há cadeias mistas, mas porque tudo ali se arranja, desde que se tenha dinheiro. Diz-me que vou agravar a minha pena, nunca sairei daqui? Mas eu não quero ser libertado. Se lhe cortar a garganta será menos uma que anda por aí a puxar-me o vómito para a boca. E depois, sabe, até melhor do que eu, que só ficarei curado no dia em que as mulheres desaparecerem do cimo da terra. Agora esteja quieta. É um segundinho apenas. Não leu o meu processo? Trabalhei num matadouro. Uma picadazinha no peito e já está. Rápido e limpo.

Foto: Nuno Lopes