segunda-feira, 4 de julho de 2011

Manuel

Manuel encontrava-se no meio da pista de dança, na discoteca tinha lugar uma festa temática. As paredes estavam decoradas com posters de barbudos com peitos e barrigas peludos. Alguns homens em redor de Manuel, que, na maioria, reproduziam as características físicas dos modelos das fotografias, dançavam no seu lugar; outros tentavam passar através deles e assim chegar às escadas de acesso ao piso superior, onde se podia fumar e conversar. Manuel divertia-se, o álcool desinibira-o e, quando o calor se tornou insuportável, teve a coragem de despir a camisa, pendurando-a num dos bolsos de trás das calças, o que era coisa que se estivesse sóbrio nunca se atreveria a fazer. Tinha perdido a conta às dietas que já fizera e às inscrições em ginásios, sem que conseguisse emagrecer. Não se distinguindo da maioria pela primeira vez, divertia-se sem reservas. O acaso levara-o ali oferecendo-lhe a alegre surpresa de que, ao contrário da ideia feita, um homossexual gordo, careca, com excesso de pilosidade corporal e já não muito jovem também pode ser considerado atraente. Manuel tinha a atenção de um homem que  conhecia de vista desde as primeiras incursões pelo Bairro Alto e Príncipe Real, há alguns anos. Estava mesmo ao seu lado, também em tronco nu. De vez em quando, empurrado pela multidão sempre que alguém tentava chegar às escadas no fundo da pista, sentia o seu corpo a escaldar. Quando assim acontecia, recebia um sorriso. Não sabia o que fazer, e o seu estômago contraía-se, nunca antes pensara que era um homem que pudesse chamar a atenção daquele estranho: esteve sempre longe de pensar que um homem todo feito de músculos, ainda jovem e com um rosto agradável, pudesse sentir qualquer atracção por um badocha como ele, tanto mais que vira-o sempre acompanhado por homens igualmente musculosos. Alguém tentou atravessar a pista, voltaram a tocar-se, voltaram a sorrir – o desconhecido descaradamente e Manuel de uma forma mais contida -, e começaram a dançar um com o outro, os rostos cada vez mais próximos. Com inesperada confiança, Manuel entreabriu os lábios. Beijaram-se com violência, como se o desejassem fazer desde que se viram pela primeira vez. Sentiu os dedos do desconhecido torcerem-lhe os mamilos e aguentou a pressão até ela se tornar em dor. “És ruim!” disse, depois de interromper o beijo. O outro olhou-o com surpresa. “Como sabes o meu nome?” O ruim chegou-lhe aos ouvidos sem o éme. Manuel voltou a sorrir e, sem vontade de desfazer o equívoco, encolheu os ombros e disse: “Mistério... Eu tenho poderes!” Já no final da noite, uma das raras raparigas que se encontravam na discoteca, uma com um lenço na cabeça, aproximou-se e interrompeu-lhes as caricias ostensivas, dizendo qualquer coisa que a música impediu de ouvirem. Ela abraçou-os e voltou a falar. Os três tinham os rostos colados, e Manuel e o seu recentissimo companheiro finalmente perceberam: “Que inveja que tenho de vocês. Fazem um casal muito giro.” Ela confundira-os com um casal de namorados. Olharam um para o outro e depois para ela, sorrindo. A rapariga contou então que tinha acabado há pouco uma relação e que, para pintar o quadro com cores ainda mais escuras, estava a fazer quimioterapia. Um rapaz aproximou-se do estranho trio e ela apresentou-o. Era o irmão, que olhava para ela com cara de quem dizia “Já não bebes mais nada.” Os irmãos afastaram-se, mas ela voltou atrás e beijou-os, não no rosto, mas na boca. “Com cada maluca...”, disse Manuel para Rui, quando ela saiu da pista.

A música chegou ao fim, a pista esvaziou-se. Manuel reflectiu sobre os possíveis desfechos daquele engate e concluiu que aquilo teria de se interromper por ali, sabia de antemão que o sexo seria mau pois não tinha intimidade suficiente para se entregar ao outro sem qualquer reticência e, depois, mau sexo significa sempre um ponto final parágrafo para qualquer engate. Mas, quando o outro lhe perguntou se queria ir para casa dele, não soube como resistir-lhe: a novidade de que afinal até poderia ser atraente merecia ser comemorada.


Algumas semanas mais tardes, Manuel voltou à discoteca. Esperava por um gin tónico quando uns braços apoiaram-se no balcão, a seu lado, intromissivamente. Olhou para o lado para ver quem se colara a ele e reconheceu a rapariga que o beijou na boca na noite em que conhecera Rui. "Olá!" disse ela, efusivamente. "O teu namorado?" Manuel sorriu e encolheu os ombros. Então ela, acenando reprovadoramente a cabeça, disse: "Os gays são todos iguais..." Perante o franzir da testa de Manuel, que não percebia onde ela queria chegar, continuou: "Têm todos um pavor danado da constância de um sentimento... tanto é o pavor que não hesitam em deitar fora, e para bem longe, algo de bonito que lhes acontece."