segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Segredo revelado

Apanharam o Freire, finalmente. Escondido sob os chorosos ramos dos salgueiros que marginam a vala da maré, canal aberto para trazer os barcos do Tejo até à herdade, masturbava-se enquanto espiava os rapazes que, depois de se verem livres da roupa, mergulhavam do pontão e depois trepavam a margem, curvados, risonhos, apoiando-se nas mãos, como grandes símios, para se atirarem de novo à água. Quatro da vintena de nadadores, que se haviam afastado para partilharem o cigarro que um deles havia conseguido surripiar ao pai enquanto este se distraíra na noite anterior, encontraram-no com as calças enrodilhadas nos tornozelos impossibilitando uma fuga atempada, espancaram-no e, o que me foi contado com a condição de guardar segredo, violaram-no; os quatro, à vez. Na manhã seguinte, na posse da informação, decidi ir vê-lo. Tinha a esperança de que, uma vez que já não podia desmentir os boatos, quisesse ouvir as dúvidas acerca da minha sexualidade e, ao contrário do que aconteceu na primeira vez que tentei fazê-lo, não atiçasse o cão na minha direcção. Espreitei por cima do muro que divide a quinta dos meus pais da dos Freire, encontrei-o no pomar. Esladroava uma laranjeira, com metade do corpo oculto pela redoma das ramagens cerradas. As pernas do Freire, metidas nuns calções, carnudas, cobertas de uma penugem com reflexos de ouro sempre que a luz filtrada pela copa incidia nela, davam-me a impressão de ser um homem possante, custando-me a acreditar que tivesse sido manietado, ainda que para tal fosse indispensável de quatro rapazes igualmente vigorosos.

Para além dele, estava no pomar, sentado num cepo de azinho, debaixo da sombra de uma nogueira carregada de nozes com as cascas já fendidas, o pai, antigo feitor da herdade. Era homem odiado. A geração dos meus pais e até à anterior, que tiveram a herdade como primeira empregadora, ainda se lembram dos seus modos de tiranete que, depois da revolução, vendo-se ele próprio sem trabalho, exerceu sobre a família. Com a morte da mulher, que abraçou a locomotiva do comboio da manhã para o Algarve, começou a descurar a higiene, andando num estado ébrio permanente.

Com os pés descalços a saírem de umas já bastante enodoadas calças de pijama, comia pão com toucinho cozido que esmagava com a lâmina de uma faca, a gordura pingava sobre o ventre bojudo, onde dava de vez em quando palmadas de contentamento, só lhe faltando desatar às gargalhadas.

- Quantos é que foram ontem? perguntou, enquanto examinava, de olhos semi-cerrados, um garrafão empalhado ao lado. 

O filho não respondeu.

- Quatro? Quatro, hein! - prosseguiu ele, zombeteiro, desafiante. - Mas aposto que não te terias importado se tivessem sido mais. Quando fiz a tropa, havia uma amélia que uma noite fez onze. Onze! E ainda não satisfeito, foi preciso que dois se pusessem nele ao mesmo tempo.

- Cale-se - disse por fim o filho, com rispidez. - Vá, mas é, buscar o podão. 

O velho levantou-se e, como que para esgotar a paciência do filho, trouxe-lhe um serrote em vez da podoa. 

- Vou-me embora desta casa - começou a dizer, mas interrompeu-se e arrastou os pés até à nogueira, onde levou o garrafão à boca. - Só me envergonhas. Há vagas no lar da Misericórdia, lá em P., e aí ninguém me conhece. Ninguém te conhece...

- Vá e não volte. Já estou com saudades - disse o filho sem deixar transparecer a ironia da última frase. Ninguém o conhece, como bem diz, ninguém sabe como foi matando a mãe, ninguém sabe o que me fez...

- Cala-te. Sabes lá do que estás a falar. Tu já te esqueceste? Já? - Interrompeu o pai, num crescendo de cólera. - Tu já então gostavas disto - disse, enquanto fechava a a mão em concha sobre a braguilha.

- Há sempre quem culpe os outros pelos seus actos mais vergonhosos- disse o filho, saindo da redoma da copa da laranjeira. Um olho pisado e a pálpebra e os lábios rasgados provaram-me de que foi verdade o que me contaram. Olhou por cima do ombro e reparou em mim, desatando a correr na minha direcção ao mesmo tempo que brandia a podoa no ar.

- Anda cá, meu cabrão, anda cá, onde está agora essa coragem, onde é que está ela, agora que não tens os outros cabrões ao lado?


4 comentários: