quarta-feira, 18 de maio de 2011

Encurralados

Era Eduardo Braço-Forte, com quem tive um caso amoroso cujo resultado infrutífero foi de inteira responsabilidade da minha então quase total inexperiência nas intrincadas matérias do coração: o terror sudoroso e taquicárdico de que a assunção de uma relação me obrigasse a anunciar aos meus familiares a secreta condição de homossexual, porque a mãe não descansaria até saber as razões da saída de casa do filho único, fez com que tivesse chegado aos 28 quase virgem... Mas como ia a dizer, Eduardo Braço-Forte era um homem que, como é vulgar encontrar entre os amantes da vida nocturna, tinha uma idade indefinida e, apesar de estar já a resvalar para os 50, todos diziam que teria entre 27 e trinta e muitos. Os olhos de gato, grandes e rasgados, que se semi-cerravam debaixo do sol, davam a ideia de que olhava para o mundo com desconfiança, os malares aguçados tornavam mais seco o rosto cheio de ângulos rectos e que terminava num maxilar bem delineado. Castigava o corpo com uma disciplina castrense através de pesos, máquinas e um eterno regime alimentar pobre em hidratos de carbono, tendo-o assim transformado numa fortaleza de músculos que na verdade era uma prisão para tudo o que considerava fraqueza. A sua aparência fazia-o um sério candidato para ser escolhido para desempenhar o papel de herói de um filme de acção; mas Eduardo não era actor. Também era verdade que aquela imagem de um homem que destila testosterona em vez de suor fazia com que ninguém o imaginasse portador de quaisquer inseguranças ou que seria capaz de nutrir sentimentos profundos por outras pessoas que não ele.

Eram onze e meia de uma noite chuvosa de dezembro. Eu andava pelo quarto à procura de uma meia que a ardência do reencontro com Eduardo, depois de uma semana sem nos termos visto, fez desaparecer, tal foi a rapidez e anarquia quando duas horas antes nos despimos. Eduardo estava recostado na cabeceira da cama fitando em silêncio a minha busca frenética. Estava com ar de quem tentava controlar a saída de um comentário capaz de começar uma discussão e eu, consciente de que o temporal poderia entrar no quarto a qualquer momento, evitava coincidir os meus olhos com os dele.

- Manuel – disse Eduardo – não achas que o desaparecimento misterioso da meia é um sinal de que deves passar o resto da noite comigo?

- Sabes bem que não posso.

- Sei? - perguntou, amarfanhando o lençol com os dedos da mão direita e cerrando o queixal.

- E o que diria eu em casa?

- É esse o teu problema? - disse, deixando permanecer no rosto uma expressão de incredulidade

- Compreendo-te – respondi, fitando-o – Falar é fácil. Não sei se posso concordar contigo.

- Porra Manuel! – exclamou, levantando-se da cama – olha bem para ti – continuou, apontando para o espelho de corpo inteiro encostado à parede defronte dos pés da cama de casal – não tarda nada tens 30 anos e continuas com medo dos teus pais ou, o que é pior, com medo de ti.

Ficámos de pé durante alguns segundos, cada vez mais assustados com o rumo que a sucessão de frases poderia tomar.

- Não sei se já reparaste, mas nunca passaste a noite comigo. Chegas, fodes e vais embora – disse enquanto se encaminhava para a cómoda – é só isso que queres de mim? - perguntou, abrindo uma das gavetas – toma! - continuou, empunhando um par de meias na minha direcção.

- Sabes bem que não é isso – disse ao agarrar nas meias.

- Mas é o que parece – retroquiu – Calça-te lá então, levo-te a casa.

- Não é preciso. Não quero dar-te trabalho

- Não queres dar trabalho ou não queres que te vejam chegar na companhia de um estranho?

- Não ponhas palavras na minha boca – disse, enquanto calçava o último sapato – em meia hora estou em casa e, depois, não vale a pena saires de casa com este temporal.

Fitava-me novamente como se não acreditasse no que acabara de ouvir.

- Não sei se gosto da direcção que isto está a tomar – disse, começando a vestir-se.

- Isto o quê? - Perguntei.

- Isto! Sabes bem!

- Não sei se realmente saberei.

- Isto! disse, apontando para mim e para ele. -  Nós. - Sentou-se na beira da cama e depois continuou - talvez tenha chegado a altura de conversarmos seriamente.

- Amanhã... Amanhã conversaremos sobre tudo o que desejares e durante o tempo que precisares. Mas hoje não. Ainda perco o comboio.

- Amanhá. Sempre amanhã – disse ao encaminhar-se para a casa da banho, fechando a porta atrás de si.

- Sabes que te amo – disse-lhe, encostando-me à porta – mas preciso de tempo.

Eduardo saiu da casa-de-banho e, para meu espanto, abraçou-me e apertou os lábios contra a minha testa. Senti um grande alívio. Mas não durou muito.

- Acho que será melhor deixar de nos vermos

- Se é isso que desejas, - disse, pondo o ónus da decisão nele.

- Não o desejo, mas será o melhor. - Libertou-me do abraço e agarrou no porta-chaves pousado no aparador. - Anda!

- Não é preciso.

- Levo-te só até à estação. Bem sei que não me deixas levar-te a casa.


Fizemos a viagem em silêncio. No parque de estacionamento da estação de Sete Rios hesitei. Não sabia como despedir-me. Adivinhando o meu constrangimento, Eduardo apertou-me o joelho e desejou-me boa viagem e boa sorte. Saí. Continuava a chover e corri para a porta da estação. Olhei para trás por cima do ombro; ele ainda não tinha regressado a casa, mas os vidros embaciados impediam-me de vê-lo. Quando o comboio chegou, sentei-me numa carruagem vazia e encostei a face ao vidro da janela, fechando os olhos. - Eu gosto dele. - O comboio reiniciou a marcha. - Não, não gosto. Eu amo-o – continuei a a dizer para mim mesmo. - Abri os olhos – que fizeste tu? - perguntei ao meu rosto reflectido na janela.



Deixei passar dois dias e só depois lhe telefonei. Receava que reconhecesse o meu número no ecran do telemóvel e ignorasse a chamada. Mas não o fez. Talvez tivesse decidido passar uma esponja sobre a nossa discussão.

- Já tenho as meias lavadas, agora é so combinar um dia para entreguá-las.

- Deixa estar – respondeu secamente – não é preciso. – e desligou.

- Estúpido, Manuel. És tão estúpido.

1 comentário:

  1. Realmente escreves bem e com sensibilidade vais contando as tristezas de quem tem dificulade em dizer que gosta de homens, de quem se envergonha em aparecer com homens suspeitos à família e de todos esses pequenos dramas, que envenenam a vida de muita gente durante largos anos.

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