quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Regresso a casa

Quando a minha mãe foi acompanhar o meu pai ao jazigo da família, tive que regularizar as partilhas da Herdade. Era ainda adolescente quando lá estivera pela última vez e pouco me lembrava da casa debruçada sobre o barranco e das brincadeiras com o Pedro, o filho dos caseiros. Era exímio a trepar aos chaparros, descendo depois cuidadosamente com uma cria de melro ou de gaio no côncavo das mãos. Sabia como atravessar uma manada sem que uma vaca investisse contra ele. Nunca, mas nunca te ponhas entre um vitelo e a mãe. Os tractores ou quaisquer alfaias agrícolas não tinham segredos para ele. E era também mágico, sabendo o que fazer para que um marmeleiro passasse a dar pêras ou nêsperas em vez de marmelos. Distinguia de olhos fechados os cogumelos e conhecia até o interior da terra, revelando rapidamente onde as túbaras se ocultavam. Era o único jovem em quilómetros e nunca percebi por que não se ia embora.

Naquela sexta-feira à tarde, ao sair do alcatrão e tomar o aceiro na direcção da Herdade, não estava à espera de encontrá-lo. Apesar de ser mais velho do que eu, ainda que apenas dois ou três anos, cumprimentou-me com uma reverência antiquada - a mesma que levara os seus pais e tratarem-me por menino depois de eu ter começado a fazer a barba - e insistiu para me levar as malas. Depois de entrarmos em casa, perguntei-lhe se ainda tinha a velha e roncante V5. Assentiu, e pedi-lhe que me levasse à barragem.

Os dentes evidenciaram-se no rosto tisnado por dias e dias passados ao ar livre. Quando a solidão, a tristeza ou alguma dor imprecisa tomavam conta dele, sentava-se ali, diante das águas. Pelo caminho, aproveitei as subidas íngremes para me segurar à sua cintura e encostar o rosto ao ombro de Pedro, que sorria para o espelho da motorizada. Na superfície da água, entre o ocaso, misturavam-se as nuvens e a sombra dos sobreiros. Acho que vou comprar a parte da minha irmã. Não sirvo para professor. Não suporto a falta de interesse dos jovens pela instrução. Mas não sei o que fazer com isto. E pensei, sem dizer: Nem sei o que hei-de fazer contigo.

Não há nada que não se aprenda, disse ele. E, depois, se te ensinei a nadar nestas águas, também posso ensinar-te a tratar da Herdade. Esta é a tua casa. Depois de pegar num graveto, acrescentou: E também a minha.

Um súbito golpe de vento açoitou a superfície da barragem, dois patos bravos voaram, com as penas brilhando sob a última réstea  de sol. Aproximei o rosto do de Pedro e arrependi-me imediatamente. Ele afastou o rosto. Desculpa, foi uma tontice. Negou com a cabeça. Não, não estás enganado. E então foi ele quem me beijou.

4 comentários:

  1. Senti o cheiro da terra, o vento na barragem e a luz do dia.
    Parabéns.
    Sérgio

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  2. João carlos - qq dia ainda sou autuado por excesso de lirismo.

    Sérgio - talvez seja outro cheiro da terra, outro vento noutra barragem e outra luz de outro dia?

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